O Menino no Espelho - Fernado Sabino - Livro
Completo
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PRÓLOGO
O MENINO E O HOMEM
Q UANDO chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos
do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos,
todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para
aparar a água que caía e para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os
mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma distração das mais
excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal correndo para lá e para cá,
e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os diferentes ruídos das gotas d'água retinindo
no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão,
formavam uma alegre melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de
parede dando horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos
como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois de examinar o telhado,
descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse
penetrar tanta água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela
casa cheia de mistérios.
O maior, porém, ainda estava por se manifestar.
NAQUELE dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal. Descalço, pouco
me incomodando com a lama em que meus pés se afundavam, gostava de abrir regos para que
as poças d'água, como pequeninos lagos, escorressem pelo declive do terreiro, formando o
que para mim era um caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel,
que eram grandes caravelas de piratas.
Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas a caminho do formigueiro, lá
perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia interrompido. As formiguinhas iam até a
margem e, atarantadas, ficavam por ali procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras, trocando idéias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho, atropelando as que vinham atrás e
estabelecendo na fila a maior confusão.
Do outro lado, entre as que já haviam passado, reinava também certa confusão. Enquanto as
que iam mais à frente prosseguiam a caminhada até o formigueiro, sem perceber o que
acontecia á retaguarda, as ainda próximas do rio ficavam indecisas, indo e vindo por ali, junto à
margem, pintando uma forma qualquer de ajudar as outras a atravessar.
Resolvi colaborar, apelando para os meus conhecimentos de engenharia. Em poucos instantes
construí uma ponte com um pedaço de bambu aberto ao meio, e procurei orientar para ela,
com um pauzinho, a fila de formigas.
Estava empenhado nisso, quando senti que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de
homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:
— Que é que você está fazendo?
Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo
consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se
agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de
duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:
— Quantas formigas eram?
Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética:
uma na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas,
mais três.
— Nove! — exclamei, triunfante.
Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda
em fila, uma atrás da outra.
Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.
— Cobra? — ele arriscou, enrugando a testa, intrigado.
Foi a minha vez de achar graça:
— Que cobra que nada! É a chuva — e comecei a rir também.
— Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água quebra?
— Sei: papel.
Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficamos
conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora
ele fosse cinqüenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe
contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei
fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido
na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei
do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o
meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que
minha amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em
seu poleiro:
— Fernando! — berrou o papagaio, imitando mamãe: — Vem pra dentro, menino! Olha o
sereno!
Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou
com medo do cachorrão, nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois
mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em
roer uma folha de couve.
O homem disse que tinha de ir embora — antes queria me ensinar uma coisa muito
importante:
— Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida?
— Quero — respondi.
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus
ombros e olhos nos meus olhos:
— Pense nos outros.
Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que
tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de
segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.
O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:
— Quem é você? — perguntei ainda.
Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre.
CAPITULO I
GALINHA AO MOLHO PARDO
AO CHEGAR da escola, dei com a, novidade: uma galinha no quintal.
O quintal de nossa casa era grande, mas não tinha galinheiro, como quase toda casa de Belo
Horizonte naquele tempo. Tinha era uma porção de árvores: um pé de manga sapatinho, outro
de manga coração-de-boi, um pé de gabiroba, um de goiaba branca, outro de goiaba
vermelha, um pé de abacate e até um pé de fruta-de-conde. No fundo, junto do muro, um
bambuzal. De um lado, o barracão com o quarto da Alzira cozinheira e um quartinho de
despejo. Do outro lado, uma caixa de madeira grande como um canteiro, cheia de areia que
papai botou lá para nós brincarmos. Eu brincava de fazer túnel, de guerra com soldadinhos de
chumbo, trincheira e tudo. Deixei de brincar ali quando começaram a aparecer na areia uns
montinhos fedorentos de cocô de gato. Os gatos quase nunca apareciam, a não ser de noite,
quando a gente estava dormindo. De dia se escondiam pelos telhados. Tinham medo de
Hindemburgo, que era mesmo de meter medo, um pastor alemão deste tamanhão. Não
sabiam que Hindemburgo é que tinha medo deles. Cachorro com medo de gato: coisa que
nunca se viu. Quando via um gato, Hindemburgo metia o rabo entre as pernas e fugia
correndo.
Pois foi no quintal que eu vi a galinha, toda folgada, ciscando na caixa de areia. Havia sido
comprada por minha mãe para o almoço de domingo: Dr. Junqueira ia almoçar em casa e ela
resolveu fazer galinha ao molho pardo.
Eu já tinha visto a Alzira matar galinha, uma coisa horrível. Agarrava a coitada pelo pescoço,
agachava, apertava o corpo dela entre os joelhos, torcia com a mão esquerda a cabecinha
assim para um lado, e com a direita, zapt! passava o facão afiado, abrindo um talho no gogó. O
sangue esguichava longe. Ela aparava logo o esguicho com uma bacia, deixando que
escorresse ali dentro até acabar. E a bichinha ainda viva, estrebuchando nas mãos da malvada.
Como se fosse a coisa mais natural deste mundo, a Alzira me contou o que ia acontecer com a
nova galinha.
Revoltado, resolvi salvá-la.
Eu sabia que o Dr. Junqueira era importante, meu pai dependia dele para uns negócios. Pois no
que dependesse de mim, no domingo ele ia poder comer de tudo, menos galinha ao molho
pardo.
Era uma galinha branca e gorda, que não me deu muito trabalho para pegar. Foi só correr atrás
dela um pouco, ficou logo cansada. Agachou-se no canto do muro, me olhou de lado como as
galinhas olham e se deixou apanhar.
Não sei se percebeu que eu não ia lhe fazer mal. Pelo contrário, eu pretendia salvar a sua vida.
O certo é que em poucos minutos ficou minha amiga, não fugiu mais de mim.
— O seu nome é Fernanda — falei então. E joguei um pouquinho de água na cabecinha dela:
— Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.
Assim que escureceu, ela se empoleirou muito fagueira num galho da goiabeira, enfiou a
cabeça debaixo da asa e dormiu. Então eu entendi por que dizem que quem vai para a cama
cedo dorme com as galinhas.
NO DIA seguinte era sábado, não tinha aula. Passei o tempo inteiro brincando com ela. Levei
horas lhe ensinando a responder sim e não com a cabeça:
— Você sabe o que eles estão querendo fazer com você, Fernanda?
Ela mexia a cabecinha para os lados, dizendo que não.
— Pois nem queira saber. Cuidado com a Alzira, aquela magrela de pernas compridas. É a
nossa cozinheira. Ruim que só ela. Não deixa a Alzira nem chegar perto de você.
Ela mexia com a cabecinha para cima e para baixo, dizendo que sim.
— Estão querendo matar você para comer. Com molho pardo.
Os olhinhos dela piscaram de susto. O corpo estremeceu e ali mesmo, na hora, ela botou um
ovo. De puro medo.
— Mas eu não vou deixar — procurei tranqüilizá-la, apanhando o ovo com cuidado, para
enterrar na areia depois e ver se nascia pinto.
E acrescentei:
— Hoje não precisa de ter medo, que o perigo todo vai ser amanhã.
Eu sabia que para fazer galinha ao molho pardo tinham de matar quase na hora, por causa do
sangue, que era aproveitado para preparar o molho.
— Vou esconder você num lugar que ninguém é capaz de descobrir.
Junto do tanque de lavar roupa costumava ficar uma bacia grande de enxaguar. A Maria
lavadeira só ia voltar na segunda-feira. Antes disso ninguém ia mexer naquela bacia. Assim que
escureceu, escondi a Fernanda debaixo dela. Fiquei com pena de deixar a coitada ali sozinha:
— Você se importa de ficar ai debaixo até passar o perigo?
Ela fez com a cabeça que não.
— Então fica bem quietinha e não canta nem cacareja nem nada. Principalmente se ouvir
alguém andando aqui fora.
Ela fez com a cabeça que sim.
— Amanhã, assim que puder eu volto. Dorme bem, Fernanda.
Naquela noite, para que ninguém desconfiasse, jantei mais cedo e fui dormir com as galinhas.
NA MANHÃ de domingo me levantei bem cedo e fui dar uma espiada na Fernanda. Encontrei a
pobrezinha mais morta do que viva debaixo da bacia. Mais um pouco e nem ia ser preciso a
Alzira usar o facão. Não sei se por falta de ar, por causa da fome, da sede ou de tudo isto junto:
ela estava deitada de bico aberto e os olhos meio fechados de quem já desistiu de viver.
Água era fácil, eu trouxe um pouco numa tigelinha, despejei pelo bico adentro e ela se
reanimou.
Mas como arranjar comida sem chamar a atenção de ninguém? Ainda não tinham notado a
falta da galinha, nem mesmo pensado em trazer alguma coisa para ela comer. Que diferença
fazia? Se ia ser comida naquele dia mesmo?
O jeito foi furtar um pouco do milho do Godofredo, que no seu poleiro, correntinha presa no
pé, acompanhava tudo com ar intrigado. A galinha come milho e o papagaio leva a fama! —
ele parecia dizer. No que tirei o milho, disparou a berrar:
— Socorro! Socorro! Pega ladrão!
O diabo do papagaio não gostava de mim, eu sabia. Era do Toninho, meu irmão, a quem dava o
pé, todo lampeiro, e ainda abaixava a cabecinha para um cafuné. Ai de mim, se quisesse fazer
o mesmo: me pespegava uma bicada na mão.
— Cala a boca, Godofredo.
— Cala a boca já morreu! Quem manda aqui sou eu!
Joguei na cara dele o resto da água da tigelinha:
— Toma, seu desgraçado, para você aprender.
— Socorro! Socorro! Pega ladrão! — berrava ele, batendo as asas.
Tamanho foi o escarcéu que o Godofredo aprontou, que acabou caindo do poleiro e fitou de
pendurado pelo pé. Foi o tempo de esconder a Fernanda debaixo da bacia e me escafeder
correndo pelo porão adentro. A Alzira já batia os chinelos escada abaixo com suas pernas
compridas, faca na mão, à procura da galinha. Ao ouvir aquele berreiro, veio ver o que estava
acontecendo:
— Que é que esse bicho tem? Não fala nada que preste e de repente destampa essa gritaria
toda!
O papagaio tentava com muito esforço voltar ao poleiro, subindo com a ajuda do bico pela
própria correntinha e se balançando de um lado para outro. Olhava com raiva para a
cozinheira, como a dizer: essa miserável nem para me dar uma mãozinha. Ela também não
achava lá muita graça no Godofredo. Dizia que ele não servia para nada, só sabia sujar de titica
o chão todo debaixo do poleiro, e ela é que tinha de limpar.
— Que é que você quer, coisa ruim? Quem é que é ladrão?
O bicho tinha conseguido com muita dificuldade empoleirar-se de novo, depois de despencar
algumas vezes.
Ofegante, entortou a cabecinha e encarou a cozinheira:
— Sua galinha! Sua galinha!
O Godofredo já havia xingado a Alzira de nomes feios, de modo que ela achou desaforo ser
chamada de galinha. E respondeu no mesmo tom, brandindo o facão para o papagaio:
— Galinha é você! Galinha verde!
Lá do fundo escuro do porão, onde tinha ido me esconder, vi a Alzira olhar ao redor:
— Por falar nisso, onde é que se meteu a galinha?
Apavorado, ouvi o Godofredo gritar, com sua voz de currupaco-papaco:
— Na bacia! Na bacia!
Além do mais, era delator, o miserável. Dedo-duro, traidor, entregava ao carrasco o seu
próprio semelhante (ou quase). Antes que fosse tarde, saí do meu esconderijo lá no porão,
como quem não quer nada, vim me sentar na própria bacia.
— Uai, que é que você estava fazendo ali escondido, Fernando?
— Nada não...
A cozinheira me olhava com ar de suspeita:
__ Boa coisa é que não há de ser. Alguma esse menino anda arrumando, com esse ar de
cachorro que quebrou a panela.
— Na bacia! Na bacia! — o Godofredo berrava.
— Cala essa boca, seu filhote de urubu! — gritei.
— Na bacia! Na bacia! — ele continuava.
— Que é que esse tagarela está falando? — perguntou a Alzira.
— Está te chamando de nabacinha.
— Nabacinha? Que quer dizer isso?
— Quer dizer vagabunda — respondi, a cara mais séria deste mundo.
A Alzira arregalou os olhos, ergueu no ar o facão:
— Vagabunda? Está me chamando de vagabunda? Nabacinho é você, seu bicho ordinário! Não
sei onde estou que não te corto o pescoço, asso no espeto e como, ouviu? E ainda chupo os
ossinhos um por um!
Ela correu de novo os olhos em torno:
— Por falar em comer: quede a galinha? Já está na hora de fazer o almoço. Onde é que ela se
meteu?
— Não sei...
— Você não estava brincando com ela ontem, menino?
— Isso foi ontem. Hoje eu não vi ela ainda
— Será que fugiu? Ou alguém roubou?
E ela olhou para o papagaio, cismada agora com o silêncio dele:
— Vai ver que é por isso que esse nabacinho de uma figa estava gritando pega ladrão. Algum
ladrão de galinha.
Agarrei a idéia no ar, era a salvação:
— Isso mesmo! Quando eu estava ali no quintal vi um homem passar correndo... Levava uma
coisa escondida embaixo do paletó. Só podia ser a galinha.
A Alzira não parecia acreditar muito na história. Pelo contrário, ficou mais desconfiada. E
naquele exato momento a Fernanda resolve se mexer debaixo da bacia, fazendo um
barulhinho na lata com o bico e com os pés. Continuei sentado e, para disfarçar, comecei a
bater com os dedos na bacia como se tocasse tambor. A galinha deve ter entendido, pois logo
ficou quieta. Mas a Alzira continuava com ar de desconfiança:
— Esse menino está com um jeito muito velhaco. Sei não... Alguma ele andou fazendo.
E saiu pelo quintal, à procura da galinha, olhando aqui e ali: nos galhos das árvores, atrás do
barracão, no meio dos bambus. Depois foi contar para mamãe que a galinha havia sumido.
Fui atrás, para o que desse e viesse. Escutei tudo. Mamãe torcia as mãos:
— E agora, como vai ser? Como é que ela foi sumir assim, sem mais nem menos?
— Sei lá — respondeu a Alzira: — Não acredito que tenham roubado, como diz o Fernando. Vai
ver que saiu voando e pulou o muro. Bem que eu pensei em cortar as asas dela e me esqueci.
Agora é tarde.
E a cozinheira me apontou:
— Para mim, a gente anda precisando de cortar as asas é desse menino.
— Está quase na hora do almoço — disse minha mãe: — O Dr. Junqueira está para chegar de
uma hora para outra, e como é que a gente vai fazer sem a galinha? O Domingos vai ficar
aborrecido.
Dali a pouco era o meu pai quem chegava da rua, trazendo o jornal de domingo debaixo do
braço. Quando mamãe lhe deu a triste notícia, para surpresa minha e dela, ele não se
aborreceu:
— Faz outra coisa. Macarrão, por exemplo. O Dr. Junqueira é bem capaz de gostar de
macarrão.
E foi ler o jornal na varanda.
Filho de italiano, quem gostava de macarrão era ele. E da macarronada que a Alzira fazia todo
mundo gostava.
Pois o Dr. Junqueira não só gostou, como repetiu duas vezes, para grande satisfação de
mamãe. Papai abriu uma garrafa de vinho daquelas de cestinha de palha, e os dois a
esvaziaram, depois de dar um pouquinho para mim e meus irmãos, com água e açúcar.
Guardanapo enfiado no colarinho, o Dr. Junqueira limpou os bigodes, satisfeito:
— Ainda bem que era essa macarronada tão boa. Eu estava com medo que fosse galinha. Se
tem uma coisa que eu detesto é galinha. Principalmente ao molho pardo.
NEM POR ISSO senti que minha amiga Fernanda não estava mais condenada à morte. Mesmo
porque, meu pai gostava também de galinha, com ou sem o Dr. Junqueira. Por outro lado, ela
não podia ficar escondida o resto da vida (eu não tinha a menor idéia de quanto tempo vivia
uma galinha). E na manhã seguinte a Maria viria lavar roupa, ia descobrir a Fernanda encolhida
debaixo da bacia.
Depois que o almoço terminou e o Dr. Junqueira se despediu, fui lá perto do tanque fazer uma
visitinha a ela, resolvido a ganhar tempo:
— Você hoje ainda vai dormir aí, mas amanhã eu te solto, está bem?
Ela fez que sim com a cabeça. Deixei água na tigelinha e mais um pouco de milho furtado de
novo do Godofredo. Antes que o diabo do papagaio pusesse a boca no mundo eu avisei:
— Se você falar alguma coisa, mando a Alzira fazer papagaio ao molho pardo para o jantar.
Ele fez cara de quem comeu e não gostou, mas ficou calado, vai ver que pensando um jeito de
se vingar.
De manhãzinha, antes que a Maria lavadeira chegasse, fui até lá, levantei a bacia e peguei a
Fernanda, procurei mamãe com ela debaixo do braço:
— Olha só quem está aqui. Mamãe se espantou:
— Uai, ela não tinha sumido? Onde é que você encontrou essa galinha, Fernando?
De repente seus olhos se apertaram num jeito multo dela, quando entendia as coisas: havia
entendido tudo. Antes que me passasse um pito, eu avisei:
— Se tiverem de matar a minha amiga, me matem primeiro.
Mamãe achou graça quando soube que ela se chamava Fernanda e resolveu não se importar
com o que eu tinha feito, pelo contrário: deixou que a galinha passasse a ser um de meus
brinquedos. Só proibiu que eu a levasse para dentro de casa. Fernanda me seguia os passos
por toda parte, como um cachorrinho.
E ela continuou minha amiga, até morrer de velha, não sei quanto tempo mais tarde.
Só sei que alguns dias depois do almoço do Dr. Junqueira, mamãe comprou um frango.
— Esse vai se chamar Alberto — eu disse logo.
— Pois sim — disse minha mãe, e mandou que a Alzira tomasse conta do frango.
No dia seguinte mesmo, no almoço, comemos o Alberto. Ao molho pardo.
CAPITULO II
O CANIVETINHO VERMELHO
TODA semana eu ganhava de minha mãe dois mil-réis para ir ao cinema. Dava para pagar a
entrada, o bonde na ida e na volta, e ainda sobrava para comprar um picolé (ou um saco de
pipocas).
Eu costumava assistir aos domingos, na matinê do cinema Avenida, a animada sessão de
bangue-bangue. A molecada vibrava assim que as luzes se apagavam, preparando-se para
acompanhar as cenas mais emocionantes, com uma gritaria de fazer o cinema vir abaixo.
Naquele dia, quando entrei, a fita já havia começado. Não vi os letreiros do princípio, de modo
que não cheguei a saber nem como se chamava. Estranhei o silêncio ali dentro, como se não
houvesse ninguém na platéia. Depois de me ajeitar no escuro, procurei prestar atenção na
tela.
Não sei por que diabo passavam naquele dia um filme diferente, sem bandido nem mocinho,
tiroteios ou perseguições a cavalo. Era uma história esquisita, meio difícil de entender, passada
na Inglaterra: a de um homem que fazia milagres.
Estavam ele e mais dois companheiros num bar, discutindo sobre a existência ou não de
milagres. Depois que os outros foram embora, o homem, já meio tonto de tanta cerveja que
havia tomado, levanta a cabeça tombada na mesa e fala, apontando o lustre do bar:
— Milagre para mim é se aquele lustre virasse de cabeça para baixo.
Na mesma hora o lustre vira de cabeça para baixo.
Ele fica impressionado com aquilo, sai do bar e vai cambaleando pela rua, apoiado na sua
bengala. De repente a bengala fica presa pela ponta num ralo de bueiro, em pé sem que ele a
segure, como se fosse uma árvore. Então ele ordena, a rir:
— Pois que vire logo uma árvore!
Na mesma hora a bengala se transforma numa árvore, cada vez mais alta, cheia de galhos que
crescem para cima e para os lados. Ele ri às gargalhadas do milagre que acabou de fazer,
quando surge um guarda no maior espanto:
— Que árvore é essa aí, que não tinha antes? Ao ver o homem, acha suspeito o jeito dele,
resolve prendê-lo porque parece embriagado. Mas o homem se livra do guarda com um
safanão, falando:
— Vai para o inferno!
O guarda sobe feito um foguete em direção ao inferno (apesar do inferno, naturalmente, ser
para baixo). Ele mal tem tempo de corrigir, com pena do guarda:
— Para o inferno não! Para a Califórnia!
Aí o filme mostra uma confusão dos diabos no trânsito de uma cidade da Califórnia, nos
Estados Unidos, acho que Los Angeles. Os guardas americanos abrem caminho para ver o que
está acontecendo, e encontram um policial inglês solene e empertigado, farda preta e
capacete alto, que tenta comandar o tráfego, perdido no meio dos automóveis.
No dia seguinte o homem, que trabalha numa loja de fazendas, recebe ordem do patrão para
que não vá embora enquanto não arrumar tudo direitinho. Ele passou o dia desenrolando
peças de fazenda para mostrar às freguesas, e agora estão todas as peças espalhadas, na
maior desarrumação. Sozinho na loja, cansado, doido para ir embora, olha desanimado ao
redor, quando se lembra do poder de fazer milagres.
Foi só bater palmas mandando que tudo voltasse ao seu lugar, e as peças de fazenda começam
a se enrolar sozinhas, voando até encontrar seus lugares nas prateleiras. E a loja fica
arrumadinha.
Depois de mil e uma peripécias, o homem que faz milagres resolve usar o seu poder para
consertar o mundo logo de uma vez, acabar com as guerras e as injustiças, fazer com que
todos os países vivam em paz. Então convoca para uma reunião os reis, presidentes, ministros,
generais, todos os que mandam nos povos do mundo inteiro. Bastava pensar nesse ou
naquele, e cada um ia aparecendo.
Quando estão todos reunidos, o homem que faz milagres ordena que eles acabem com os
desentendimentos de uma vez por todas, façam as pazes e não briguem mais.
Mas eles não estão de acordo com aquilo, começam a discutir, ninguém se entende, e o
homem acaba perdendo a paciência:
— Já que vocês não se emendam — grita ele — então que este mundo acabe de uma vez!
No que fala isto, o mundo se abre como se tivesse explodido. Todos saem voando pelos ares,
entre casas, automóveis, árvores, vacas e tudo mais. Rolando no espaço, desesperado, o
homem ainda tem tempo de pedir:
— Que tudo volte a ser como era antes do primeiro milagre!
Na mesma hora ele se vê no bar, levantando a cabeça da mesa e olhando para o lustre:
— Milagre para mim é se aquele lustre virasse de cabeça para baixo.
O lustre continua imóvel, sem se mexer. E o filme acaba.
FUI para casa impressionado com a história dos milagres. De noite, na cama, continuei
pensando no filme, sem conseguir dormir. O que me intrigava era a espécie de milagres que o
homem pedia: tudo bobagem, a bengala virar árvore, salvar o mundo, coisas assim. Comigo,
seria diferente. Eu haveria de pedir outros milagres. Como, por exemplo...
— Apaga essa luz que eu quero dormir.
Era o Toninho. Dormíamos no mesmo quarto. Mais velho do que eu, já estudava no turno da
manhã, tinha de acordar cedo. Era assim quase toda noite: eu gostava de ler antes de dormir,
e ele pedindo que apagasse a luz. O botão ficava perto da minha cama.
E então aconteceu.
A luz se apagou sozinha, quando olhei para ela como fez o homem no filme e experimentei
ordenar que se apagasse. Não precisei pronunciar uma única palavra: foi só pensar e ela se
apagou.
Toninho, virado para o outro lado, não chegou a perceber nada. Certamente achou que eu me
levantei e fui até a parede apagar a luz, como fazia sempre.
Fiquei deslumbrado: quer dizer que eu também podia fazer milagres! Para tirar qualquer
dúvida, ordenei mentalmente que a luz se acendesse de novo. li ela se acendeu.
Que brincadeira é essa? — exclamou o Toninho, virando-se na cama, os olhos cheios de sono:
— Fica acendendo e apagando a luz! Apaga de uma vez!
Para que ele não desconfiasse, tornei a apagar a luz, desta vez por mim mesmo, sem milagre
nenhum.
Nem voltei para a cama. De pé, no escuro, mandei que a noite se acabasse e o dia nascesse de
uma vez. E vi pela janela o céu começar a clarear rapidamente, o sol subindo no horizonte
como um balão. Toninho se ergueu na cama, esfregando os olhos:
— Puxa, como eu dormi! Já deve ser tarde, vai ver que perdi a hora.
E vestiu correndo o uniforme do colégio.
Depois de me vestir também, saí para o quintal, disposto a iniciar a minha vida de milagres. O
primeiro que fiz foi ao dar com a Fernanda:
— Gosto tanto de você, Fernanda, que vou fazer aparecer uma porção de galinhas iguais a
você aqui no quintal.
No mesmo instante o quintal se encheu de galinhas, todas parecidas, a ponto de eu não saber
qual era a Fernanda. Eram todas do mesmo tamanho e da mesma cor. Naquele momento a
Alzira cozinheira surgiu na escada da cozinha para bisbilhotar, como fazia sempre, e depois ir
contar para mamãe. Esbugalhou os olhos, levantou os braços e quase caiu para trás, ao ver
tanta galinha. Embarafustou-se pela casa adentro, a gritar:
— Dona Odete! Açode, dona Odete! Vem ver uma coisa!
Sem perda de tempo, mandei que as galinhas sumissem, só ficasse a Fernanda. Quando a
Alzira voltou, acompanhada de mamãe, só havia uma galinha ciscando distraída na caixa de
areia, como de hábito.
— Onde é que você viu tanta galinha, Alzira? Ficou maluca? — e minha mãe sorriu, balançando
a cabeça.
A Alzira olhava o quintal, com cara mesmo de maluca:
— Eram mais de mil! Agorinha mesmo, não faz nem um minuto! Eu vi! Juro pelo que há de
mais sagrado!
Resolvi pensar um pouco, antes de fazer outras proezas. O meu poder tinha de ser bem
aproveitado. Eu não sabia se ia usá-lo o tempo que quisesse ou só para certo número de
milagres. O jeito era usar o próprio poder para ficar sabendo.
— Quantos milagres eu posso fazer? Dura o tempo todo, esse poder, ou acaba de uma hora
para outra?
Ninguém me respondeu. Não havia ninguém mesmo para responder, a não ser o Godofredo, e
que é que um papagaio entende de milagres? Eu não sabia nem mesmo a quem me dirigir. Se fosse Deus que tivesse me dado aquele poder, Ele também
não respondeu. Com certeza não estava querendo se comprometer.
— Então está bem — concluí: — Vamos tirar o melhor proveito disso.
UM DOS sonhos da minha vida era ter em casa uma piscina. Tinha aprendido a nadar, já havia
disputado mesmo uma competição na piscina do Minas Tênis Clube, categoria de petiz,
pretendia me tornar campeão, nadando no mínimo tão bem como Tarzã. Gostava também de
mergulhar, embora achasse que o fôlego mal dava para a gente se distrair debaixo d'água, não
mais que um minuto e pouco. Agora, poderia fazer o milagre de ficar sem respirar o tempo que
quisesse.
E mais: sempre imaginei uma piscina que tivesse numa de suas paredes um túnel para, através
dele, chegar a um esconderijo que fosse só meu, um lugar que só eu soubesse existir. Uma
espécie de salão subterrâneo sem outra entrada que não fosse pelo túnel debaixo d'água. Lá
dentro eu teria todas as coisas de que mais gostava: meus brinquedos, meus livros, meu
futebol de botão, minhas bolas de gude, minha coleção de selos, de figurinhas, de marcas de
cigarro. Tudo ali era automático: bastava apertar um botão e se abria uma janelinha na
parede, aparecia um cachorro-quente; várias torneirinhas comandadas por botão deixavam
escorrer groselha, soda-limonada, guaraná, laranjada e tudo quanto é espécie de refrescos.
Haveria a qualidade e a quantidade que eu quisesse de sorvete, doce, bala, bombom. Puxando
uma alavanca, eu fazia o teto se abrir numa espécie de clarabóia, por onde podia ver o céu e
até empinar um papagaio. Teria um telescópio também, dos mais possantes do mundo, para
ver a lua e as estrelas. E tudo que eu quisesse.
Era o que eu imaginava na cama, antes de dormir, sem acreditar que um dia tudo viesse a ser
realidade. Ali estava a oportunidade, e não perdi tempo: mandei que a caixa de areia virasse
uma piscina, com tudo o que eu tinha imaginado.
O susto que a Fernanda levou quase me mata de rir: a coitada mal teve tempo de saltar para a
terra, quando viu a areia em que pisava se converter na água azul de uma bela piscina.
Tirei a roupa e pulei de cabeça.
Logo encontrei o túnel, que era curto como eu tinha previsto, uns três metros de
comprimento. Foi fácil atravessá-lo debaixo d'água. Uma curva para cima, como eu tinha
imaginado, levou-me à saída, que era uma espécie de poço no chão, com uma escadinha de
metal, dessas que toda piscina tem. Encontrei toalhas para me enxugar e um roupão para
vestir. Eu ria de felicidade: tudo o que eu queria ali estava. Aquele era o meu mundo, o meu
domínio, a que só eu tinha acesso. Eu me sentia um verdadeiro rei.
Tinha de tomar cuidado para que não descobrissem o meu segredo. Ninguém acredita em
milagres. E eu não sabia como usar o meu poder para não deixar que ficassem sabendo. Ao
voltar para o quintal através da piscina, vi no alto da escada da cozinha, a Alzira estatelada de
espanto. Ao dar por mim, ela entrou correndo pela casa adentro:
— Socorro, dona Odete! Deus nos acuda! Vem ver uma coisa!
Mamãe veio com ela e, como da outra vez, não viu nada: eu já havia mandado que a piscina
voltasse a ser uma simples caixa cheia de areia.
— Essa mulher não está boa da bola — mamãe comentou, resignada: — Onde é que você viu
piscina?
A Alzira agitava os braços para o céu, aparvalhada:
— Sou capaz de jurar! Sou capaz de jurar!
Passei o dia inteiro experimentando com cautela o meu poder. Ordenei que o dia se
convertesse em feriado, para não precisar de ir à escola. Em pouco era o Toninho que
regressava do colégio, todo satisfeito:
— Suspenderam as aulas. Hoje é feriado.
— Feriado como? — estranhou minha mãe.
— Sei lá — disse ele: — Dia santo, acho.
— Dia santo? — mamãe estranhou mais ainda: — Que santo é esse, que eu não estou
sabendo?
— Dia de São Nunca, mamãe — informei, satisfeito.
E fui para o quarto fazer a lista das coisas que eu queria que acontecessem, para experimentar
uma por uma. A primeira delas...
BEM, aí é que estava o problema, tantas foram as idéias que me vieram ao mesmo tempo.
Uma, por exemplo, que foi sempre um grande sonho meu: ficar invisível. Mas, pensando bem,
para que eu queria ficar invisível? Que vantagem havia no fato de não ser visto pelos outros? A
única que me ocorreu foi a de entrar no cinema sem pagar. Mas corria o risco de alguém se
sentar em cima de mim, pensando que a poltrona estivesse vazia.
Em todo caso, fui ao espelho e falei para a minha imagem:
— Fique invisível!
O susto da minha vida: na mesma hora vi a minha roupa vazia, flutuando no ar, os meus
sapatos se mexendo sozinhos, as calças sem minhas pernas dentro, as mangas da blusa sem
braços, a gola sem pescoço e eu sem cabeça. Era mesmo para assustar qualquer um! Já ia tirar
a roupa toda para que desaparecesse até a forma do meu corpo, mas achei mais prático fazer
a roupa se tornar invisível também. Não seria nada engraçado se tivesse de voltar a ficar visível
e aparecesse pelado na vista de todo mundo.
Senti uma grande aflição quando não vi mais nada diante do espelho. Tive que me apalpar para saber que ainda estava ali.
Saí do quarto e fui ver o que acontecia. Passei pela minha mãe na sala e ela olhou através de
mim como se eu não existisse. Não resisti e chamei-a:
— Mamãe...
Ela olhou em direção à minha voz:
— Fernando? Onde é que você está?
— Aqui... — e fui me colocar às suas costas. Ela se voltou na cadeira:
— Aqui onde? Por que você está se escondendo?
Ao ouvir de novo minha voz, vinda agora de outra direção, ela se levantou, desnorteada, deu
uma volta completa com o corpo, inspecionando a sala inteira. Depois se curvou para olhar
debaixo da mesa:
— Onde é que se meteu esse menino, minha Nossa Senhora.
Embarafustei-me rindo pelo corredor adentro, fui até a cozinha. Dei com a Alzira de costas
para mim, diante do fogão. Fiquei rente dela, e comecei a destampar as panelas, para ver o
que tinha dentro.
Nem cheguei a ver: ela soltou um berro e pulou para trás, ao dar com as tampas se erguendo
no ar. Então peguei numa panela pelo cabo e a levei até a mesinha ao lado da pia. Ela
acompanhou com olhos arregalados a panela no ar, botou a boca no mundo:
— Te esconjuro! Virgem Santíssima, tem dó de mim! Essa casa tá mal-assombrada!
E disparou em direção à porta dos fundos, levando um trambolhão ao esbarrar de cheio em
mim:
— Ui, que é isso? Ai, meu santo, tem demônio aqui pra todo lado!
Num segundo ela despencava escada abaixo, indo se refugiar no seu quarto. Refeito do susto
que levei eu próprio, quando ela quase me atirou ao chão, fui atrás. Por pouco não atropelo a
Fernanda, que estava no meio do quintal, e não se afastou para me dar passagem. Pela
janelinha do barracão vi a cozinheira ajoelhada no chão diante de um santinho pregado na
parede, fazendo o nome-do-padre, um atrás do outro.
Antes de reaparecer, resolvi ainda passar um susto no Godofredo. Cheguei bem pertinho do
poleiro e o papagaio ficou com aquele olhar parado assuntando o ar, como se tivesse ouvido
algum barulhinho. Quando ia cutucá-lo com o dedo, para derrubá-lo do poleiro, o miserável
virou rápido a cabeça e me deu uma bicada na mão. Quem se assustou fui eu:
— Desgraçado, você me paga por essa papagaiada.
Chegou a sair sangue. Como é que ele teria me visto?
Só quando voltei ao meu quarto, antes de me tornar visível, é que reparei que o dedo ficou
sujo de fuligem quando mexi nas panelas.
PENSEI em experimentar outros milagres: ler o pensamento das pessoas, adivinhar o futuro,
voltar ao passado, enxergar através das paredes, diminuir ou aumentar de tamanho como
Alice no Pais das Maravilhas, ouvir de longe o que os outros falavam, ver à distância como um
binóculo, enxergar micróbios como num microscópio, ter a força do Super-Homem, e outras
coisas fantásticas que sempre senti vontade de fazer. Mas tudo isso agora me parecia
bobagem. Que adiantava saber o que os outros pensavam, ou estavam fazendo atrás das
paredes, ou falando longe de mim?
Mas da idéia do Super-Homem passei a outra, esta sim, absolutamente sensacional: eu queria
conhecer ao vivo um dos meus heróis, Tarzã em pessoa!
— Quero conhecer Tarzã.
No mesmo instante ouvi lá fora o famoso grito do Filho das Selvas, tão meu conhecido e
impossível de ser imitado:
— Oôôôiôiiiôiôôôu!
Era o mesmo grito com que ele chamava Tantor, o elefante, nos momentos de perigo. Ouvi
uns guinchos e dei com a Chita a meu lado, puxando-me o braço. A macaca me levou até o
quintal e lá estava Tarzã, enorme, colossal, à minha espera. Abaixando-se, mandou que eu
subisse às suas costas. Num salto se dependurou num galho da mangueira, dali para outro
galho mais alto, outro ainda, e lá fomos nós, Tarzã já se balançando num cipó comigo às
costas, lançando-se no ar, entre as folhas verdes e os galhos das árvores de uma imensa
floresta. Para onde estaria me levando? Eu abria bem os olhos, para não perder nada daquele
passeio pela selva, nas costas de Tarzã. Aquilo era mais assustador que a montanha-russa, eu
morria de medo de cair e me esborrachar lá embaixo. Mal conseguia me segurar nos ombros
largos e suados do Homem-Macaco.
E o pior é que ele começou a sentir cócegas. À medida que minhas mãos iam escorregando em
suas costas ele se sacudia todo, rindo cada vez mais. Eu é que não achava graça nenhuma,
quase me despencando daquela altura. Já havia imaginado Tarzã nas situações mais
fantásticas, mas nunca rindo às gargalhadas.
Antes que caísse ali de cima, mandei que ele se transformasse num pára-quedas. E vim
descendo de mansinho, como se tivesse saltado de um avião, até cair no quintal da minha
casa.
Estava decepcionado com Tarzã: só não mandei que fosse para o diabo porque me lembrei do
guarda naquele filme. Mas eu era mais poderoso, eis tudo. Era capaz de fazer mais prodígios
do que ele, até do que Mandrake.
Seria mesmo?
Resolvi convocar o famoso mágico. Ele logo me apareceu com a sua capa preta e cartolinha na
cabeça. Tinha o ar cansado e sua casaca me pareceu meio velha e surrada, como a de um
mágico de circo. Vinha seguido de Lotar, seu fiel ajudante. Preferi dispensar o negrão:
— Você não. Pode ir embora.
Lotar fez uma curvatura em despedida e se evaporou no ar. Então perguntei ao Mandrake:
— Quem é mais poderoso? Quem faz mágicas ou quem faz milagres?
— Quem faz milagres — respondeu ele modestamente.
— Então sou mais poderoso que você.
— Não, porque o seu poder vai acabar, e o meu vai continuar eternamente.
— Como é que você sabe?
— Sei, porque o meu mundo é o das figurinhas, onde tudo dura para sempre, ao passo que, no
seu, tudo começa e acaba.
Agarrei-me à sua mão, ansioso:
— Quando é que vai acabar o meu poder de fazer milagres?
Quando você quiser.
— Nunca vou querer.
— É o que você pensa.
— Então faz uma mágica bem boa para mim. Ele tirou a cartola, me olhou no fundo dos olhos,
como se estivesse me hipnotizando, e falou:
— Meta a mão nesta cartola, que tem uma coisa para você.
Fiz como ele mandava e tirei da cartola um canivetinho vermelho. Tinha várias lâminas e até
uma tesourinha, mas não passava de um canivete. Achei aquela mágica meio boba. Em todo
caso, era um presente dele — embora eu, com o meu poder milagreiro, pudesse conseguir
coisa mil vezes melhor.
Sem uma palavra, ele botou a cartola na cabeça, fez meia-volta e se afastou, saindo para a rua
pelo portão da frente, como uma pessoa qualquer.
FIQUEI impressionado com o que o Mandrake me havia dito. A minha sensação era de que o
poder de fazer milagres ia se acabar de uma hora para outra. Por via das dúvidas, resolvi
empurrar a noite mais para diante e fazer ainda um grande milagre naquele dia.
Qual podia ser?
De súbito me ocorreu uma idéia, saltei de alegria:
— Eu quero visitar o Sítio do Pica-pau Amarelo!
No mesmo instante me vi andando por uma estradinha, passei por uma porteira, e lá estava a
Narizinho Arrebitado sentada nos degraus da varanda do famoso sítio, tendo Emília a seu lado.
Mandei que a tarde se prolongasse o tempo que eu quisesse e passei toda ela conversando
com aquele pessoalzinho, um por um. O Visconde de Sabugosa me pareceu muito mais
engraçado pessoalmente que nos livros. Veio me cumprimentar todo emproado, tirando a
cartolinha num salamaleque:
— Bem-vindo a esta casa, Dom Fernando.
O Marquês de Rabicó me espiava de longe, meio encafifado com a minha aparição, mas
acabou se chegando, a mexer no ar o seu rabinho de saca-rolha. Depois Dona Benta veio me
oferecer umas mães-bentas e uma deliciosa xícara de chocolate. Tia Anastácia estava
resmungando lá na cozinha, até parecia a Alzira, só que era preta e gordona. Estava se
queixando do Pedrinho, que certamente fizera mais uma de suas travessuras.
Quando me viu, Pedrinho me chamou de lado e perguntou se era verdade que eu sabia fazer
milagres.
— Mais ou menos — respondi, encabulado. — Eu queria que você fizesse um para mim —
pediu ele: — É por causa da tia Anastácia. Ela não acredita que a terra é redonda e que os
japoneses estão de cabeça para baixo, só não caem por causa da atração da Terra.
Com o ar superior de quem sabe as coisas, falei:
— É a lei da gravidade. É só acabar com ela, para ver o que acontece.
Não era propriamente uma ordem, nem mesmo um pedido de milagre, mas soou como se
fosse. E de repente Pedrinho à minha frente, eu, Narizinho na varanda, a varanda, o sítio
inteiro com a Emilia, o Visconde, o Marquês, a Dona Benta, a tia Anastácia, as árvores, as
casas, tudo saiu voando pelos ares como numa tremenda ventania. Me lembrei do filme sobre
o homem que fazia milagres e, entre duas cambalhotas, mal tive tempo de fazer como ele,
pedir depressa para acabar com aquilo, voltar ao que era antes dos milagres.
— Apague essa luz que eu quero dormir. Era a voz do Toninho. Abri os olhos e vi que eu estava
na cama, pronto para dormir. Olhei intensamente para a luz e mandei que ela se apagasse.
Nada aconteceu. Então fui até lá e apertei o botão. Voltei para a cama e em pouco tempo
estava dormindo.
Ao acordar, mal me lembrei dos milagres, senão de maneira confusa, como se tudo não tivesse
passado de um sonho. Mas depois de vestir a roupa, ao meter a mão no bolso da calça,
encontrei um objeto, retirei para ver: era um canivetinho vermelho.
CAPÍTULO III
COMO DEIXEI DE VOAR
Naquele tempo os aviões se chamavam aeroplanos. Era só passar um avião e eu saía no meio da
molecada, em algazarra pela rua, apontando o céu e gritando:
— Aeroplano! Aeroplano!
Ouvindo a gritaria, os mais velhos se debruçavam nas janelas e olhavam para cima, procurando
Ver também. Não eram aviões grandes nem de metal como os de hoje, mas teco-tecos de
madeira e lona, duas asas de cada lado, uma em cima da outra, presas com arames cruzados.
Nele só cabiam dois aviadores que a gente podia ver, a cabecinha de fora, com um gorro de
couro e óculos tapando os olhos para não entrar poeira.
Uma vez papai nos levou ao campo de aviação do Prado para ver as acrobacias. Eu mal
conseguia pronunciar essa palavra, quanto mais saber o que ela significava.
Foi um deslumbramento.
Eram dois ou três aviõezinhos: levantavam vôo como se fossem de brinquedo e faziam
piruetas, voavam de cabeça para baixo, desciam, quase se arrastavam no chão e tornavam a
subir.
Um deles começou a soltar fumaça, fazendo letras no ar, escrevendo palavras inteiras.
A certa altura dois aviões passaram a voar juntinhos, um em cima do outro, quase se
esbarrando. Então um dos aviadores do que estava embaixo realizou a proeza máxima, eu não
podia acreditar no que meus olhos viam: saiu do seu buraquinho no avião e foi se agarrando
pelo lado de fora, subiu na asa e se dependurou nas rodas do outro! Depois montou no eixo
como se estivesse fazendo ginástica numa barra, pernas para o ar, passou para a asa de baixo,
agarrado na de cima, e foi assim que voltou à terra, triunfante, até o avião pousar.
Fizeram mil outras façanhas de encher os olhos.
De repente, a multidão que assistia ao espetáculo aéreo, dentro e fora do campo de pouso do
Prado, soltou um grito: um dos aviões que acabara de passar baixinho em cima de nossas
cabeças não conseguiu ganhar altura e foi cair lá fora, no descampado, para os lados do
Calafate.
Um caminhão partiu em disparada para o local. Em pouco voltava, trazendo os destroços do
avião e os dois pilotos, um deles bastante machucado (pude vê-lo encolhido ao lado do
motorista, com o rosto ensangüentado). Os mais velhos diziam ao redor, sacudindo a cabeça,
admirados, que ele tinha nascido de novo.
O desastre não chegou a me impressionar. Do espetáculo ficou a lembrança da maravilha que
era aquilo, poder pilotar um avião. E resolvi não esperar ser grande para poder realizar o meu
desejo: eu mesmo fabricaria um avião.
Para isto, aproveitaria um carrinho de pedal que meus pais me tinham dado no meu último
aniversário. Era um carro de corrida, e para dirigi-lo eu entrava nele como um piloto no avião.
Bastava colocar as asas.
Cortei uns bambus do quintal, preparei umas taquaras como fazia para a armação de um
papagaio, só que bem mais longas e grossas; com elas e pedaços de um velho lençol colados
com grude de polvilho, fiz duas asas, que amarrei de cada lado do carrinho. Depois preguei na
traseira umas asas mais curtas e o leme, também de pano e taquara.
Estava pronto o avião, mas e o motor?
Levei algum tempo estudando um aviãozinho de brinquedo que me serviu de modelo. Tinha
uma hélice presa num elástico esticado até um gancho entre as asas: era só enrolar a hélice
com o dedo e soltar, que o aviãozinho saía voando.
Estava ali o meu motor: bastava imitá-lo, em tamanho maior.
A hélice foi aproveitada das pás de um ventilador imprestável que encontrei no quarto de
despejo, lá no barracão do fundo do quintal. A borracha de uma velha câmara de ar da
bicicleta do Toninho faria o papel do elástico. Foi um custo conseguir enrolá-la, depois de
esticada entre a hélice e o prego fincado junto às asas para servir de gancho: a câmara de ar ia
se enrolando, se enrolando, a hélice ia ficando cada vez mais dura para girar e de repente se
desenrolava toda, por pouco não me decepou a mão. O avião chegava a se erguer do chão, eu
tinha de segurá-lo para que não levantasse vôo sem que eu tivesse tido sequer tempo de
entrar nele.
Acabei encontrando a solução: liguei a hélice, por um sistema de cordas, à minha manivela de
empinar papagaio. Com ela no colo, eu podia enrolar a borracha, já sentado no avião. Depois,
era só largar a manivela, que ela deixava a borracha se desenrolar sozinha, impulsionando a
hélice.
Tudo pronto para a grande aventura, coloquei o aviãozinho num canto do quintal, e instalei-
me dentro dele. Não faltava nem uma touca de banho de minha mãe e uns óculos de carnaval,
que eu usava como os de um aviador de verdade. E me preparei para a decolagem, torcendo a
manivela até o máximo que pude.
A câmara de ar, enrascada como um cipó, se desenrolou com toda a força, impulsionando a
hélice. E lá fui eu, deslizando pelo chão!
Só que o avião não levantou vôo: correu comigo pelo quintal e espatifou-se de encontro ao
muro. Fiquei todo machucado (embora não tanto quanto o aviador de verdade no desastre do
Prado). O pior é que perdi o meu carrinho de corrida, que ficou para sempre arrebentado.
Com essa desastrada aventura, desisti de voar — pelo menos enquanto não pudesse ter um
avião de verdade.
ATÉ que, um dia, uma idéia nova me surgiu na cabeça. Uma idéia tão doida, que eu não teria
coragem de contá-la para ninguém: pensariam que eu tinha ficado completamente maluco e
me internariam num hospício. Não me veio de repente, mas aos pouquinhos, depois de
observar vários fatos miúdos que aconteciam comigo, e que fui ligando a outros até chegar a
uma conclusão.
Fiquei pensando, por exemplo, numa brincadeira que eu fazia sempre, ao me pôr de pé:
costumava puxar os cabelos para cima, como se aquilo me tornasse mais leve, ajudando a me
erguer da cadeira. E os outros achavam graça.
Tinha também a mania de fingir que me agarrava em algum apoio imaginário no ar — uma
barra, uma corda, uma argola — para me tornar mais leve ao me levantar da cama.
Pois comecei a reparar que tanto uma coisa como outra realmente me faziam mais leve, não
era apenas ilusão.
Minha mãe tinha me contado que no seu tempo de criança havia uma brincadeira muito
divertida: um balão de borracha cheio de um gás mais leve que o ar, mas bem grande, que se
prendia no ombro das pessoas e as fazia mais leves, quase não tocando o chão, e cada passo
era um salto gigantesco, como se fossem levantar vôo... Não sei se isso era invenção de
mamãe (tive a quem puxar) — o certo é que me deixou fascinado, doido de vontade de
experimentar a brincadeira.
Mas onde arranjar um balão como aquele?
Uma noite tive um sonho maravilhoso: sonhei que sabia voar. Bastava movimentar os braços,
mãos abertas ao lado do corpo fazendo círculos no ar, e eu me descolava do chão como um
passarinho, saía voando por cima das casas e pelos campos sem fim.
Durante vários dias aquele sonho não me saiu da cabeça.
Acabei cismando que poderia torná-lo realidade. Ia para o fundo do quintal e, longe da vista
dos outros, ficava horas seguidas ensaiando o meu vôo. Mexia com as mãos, sem parar, como
fizera no sonho, e nada. Eu sabia que não era uma questão de força, mas de conseguir
estabelecer, com o movimento harmonioso das mãos, um misterioso equilíbrio entre o meu
peso e o peso do ar. Como se estivesse dentro d'água e quisesse me manter à tona: qualquer
gesto mais forte ou afobado e eu me afundava.
Pois um dia, depois de muito treino, senti que começava a ficar mais leve. Ou era só
impressão? Tinha passado a fazer aqueles exercícios de calção de banho, justamente para
sentir que, sem a roupa, meu peso era menor. E naquele instante parecia que eu estava quase flutuando no ar. Experimentei dar uns passos, bem de mansinho, como se estivesse andando em cima d'água. E a sensação foi de não estar tocando o chão. Descalço, já não sentia na sola dos pés o contato áspero da terra do quintal. Por vários dias repeti a experiência. Ao fim, já sabia instintivamente os movimentos que tinha
de fazer com o corpo para começar a flutuar, como alguém que tivesse aprendido a nadar. Um
ligeiro impulso com os braços, bem devagar, levantando os cotovelos, me fazia deslizar
mansamente, como se estivesse usando patins invisíveis. Apenas não tinha força suficiente
para ganhar altura, e toda vez que eu me impacientava e fazia um movimento mais rápido,
sentia meu corpo de súbito se abater contra o solo.
Com a prática, acabei conseguindo me erguer um ou dois palmos e sair deslizando pelo quintal
durante algum tempo. Mas era pouco. Assim de pé, não podia dizer que estivesse voando. Eu
percebia que só deitado, braços abertos como as asas de um pássaro, é que chegaria a voar de
verdade. Mas quando experimentava me deitar e movimentar os braços como fazia de pé,
sentia que jamais sairia do chão. Era como querer nadar no fundo de uma piscina sem água.
Acabei me convencendo de que, para sair voando, eu teria de já estar no ar.
Como? Subindo na mangueira e me atirando lá de cima? Eu não era maluco a este ponto: o
peso do meu corpo faria com que eu me esborrachasse cá embaixo no chão. Era preciso que
tivesse como tomar algum impulso...
Foi então que me veio a solução.
Como já disse, no fundo do quintal de nossa casa havia um pequeno bambuzal. Uma das
brincadeiras que a gente fazia ali era a de se dependurarem vários meninos num dos bambus,
fazendo com que ele se entortasse até que tocassem o pé no chão. Em dado momento todos,
a um só tempo, largavam o bambu, menos o que estivesse na ponta: este continuava
dependurado e subia como um foguete, agarrando-se com todas as forças no bambu pura não
ser atirado longe. E ficava balançando de um lado para outro lá em cima, como um pêndulo,
até que o movimento parasse de todo e ele pudesse vir escorregando bambu abaixo.
Mais de uma vez eu participara daquela brincadeira. Sendo o menorzinho, e portanto o mais
leve, em geral era o que ficava mais tempo balançando, dependurado na ponta do bambu.
Só que, agora, eu não ia apenas me dependurar: ia subir com o bambu e aproveitar o impulso
para sair voando.
EVIDENTEMENTE não contei a ninguém a minha Intenção.
A princípio tudo deu certo: a subida foi sensacional. Quando a meninada largou o bambu,
esperei que ele se empinasse, e larguei também. Fui projetado para cima como uma bala de
canhão. Subi, subi, subi, vendo lá embaixo no quintal diminuírem cada vez mais as figurinhas
dos outros meninos, agitando os braços para mim, cheios de espanto e admiração.
Em pouco tempo eu podia avistar do alto não somente o telhado da minha casa entre as
árvores, como a cidade inteira com as suas ruas e praças, ônibus, bondes e automóveis
deslizando como baratinhas.
Mas tudo começou a rodar diante de meus olhos quando meu corpo, perdendo o impulso que
lhe havia dado o bambu, passou a virar cambalhotas no ar como as piruetas de um avião. Senti
que era tempo de começar a voar por mim mesmo, antes que despencasse lá de cima como
uma pedra.
Abri os braços, procurei uma posição de equilíbrio, como se fosse um pássaro, e movimentei
as mãos como tinha ensaiado. Um bando de andorinhas passou por mim em revoada, sem
tomar conhecimento de minha presença. O silêncio ali em cima era impressionante. Vi pouco
acima de mim e meio de lado um urubu planando calmamente ao sabor do vento e a me olhar,
desconfiado. Aquele bicho era capaz de me trazer azar.
— Vai embora, urubu! — gritei, mas ele nem ligou.
Tentei imitá-lo no seu vôo, quando percebi que eu estava era caindo mesmo. E cada vez com
mais velocidade, apesar de meu esforço para me manter no ar. Eu sabia que quanto mais me
agitasse, mais rápida seria a queda. No entanto, não conseguia me conter e mexia os braços e
as pernas, desesperado como alguém que dentro d'água perde as forças e começa a se afogar.
E sempre caindo. Lá embaixo o telhado das casas, as árvores, as ruas já se aproximando
velozmente.
Senti que estava perdido. Não adiantava mesmo continuar a me mexer.
Então fechei os olhos e esperei pelo pior. Meu corpo assim esticado pareceu que já não
tombava tão depressa: planava um pouquinho no ar, como o urubu, sustentado pelo vento
que estava soprando. Mas continuava caindo — em poucos segundos eu estaria me
arrebentando lá embaixo no chão.
Só me restava pedir a Deus que tivesse piedade de mim, me levasse de uma vez para o céu.
Foi quando ouvi um barulhinho no ar. Abri os olhos e vi o aeroplano voando lá longe, depois
fazendo uma volta e vindo em minha direção. O piloto parece ter me visto também, pois se
aproximava cada vez mais. Ao chegar bem perto fez um sinal com o braço. Respondi com um
gesto aflito de quem pede socorro. Ele deve ter entendido: fez uma volta e veio vindo por
detrás, para passar bem em cima de mim. Procurei planar o mais possível. braços abertos, e
quando vi que ele se emparelhava comigo, ergui os braços e me agarrei com força no eixo
entre as rodas, como havia feito o aviador nas acrobacias lá do Prado.
Não foi fácil montar no eixo e dali passar para a asa, mas acabei conseguindo. Na hora do
aperto a gente é capaz de tudo.
Por detrás dos seus óculos colados no rosto, o piloto me olhava, assombrado. Logo o avião
ganhou velocidade, rumando para o campo de pouso.
Ao fim de algum tempo, que me pareceu uma eternidade, acabamos descendo mansamente
na pista.
Nem bem o avião tinha parado na grama, meu pai chegava esbaforido num carro de praça,
para me buscar. Avisado pelos outros meninos da minha aventura, havia tomado aquele carro
de aluguel — coisa que só fazia nas grandes ocasiões.
Depois disso não voltei mais a sair do chão. Minha mãe achava que eu andava muito
magrinho, me obrigava a comer de tudo e tomar fortificante para engordar. Acabei
engordando mesmo. Não muito, mas o bastante para não conseguir mais voar.
CAPÍTULO IV
O MISTÉRIO
DA CASA ABANDONADA
MAS consegui coisa mais importante: me tornei agente secreto.
O Departamento Especial de Investigações e Espionagem Olho de Gato achava-se instalado
nos altos do prédio situado na Praça da Liberdade, número 1458, em Belo Horizonte, Minas
Gerais, Brasil, América do Sul, Hemisfério Ocidental, Terra, Universo
Ou seja: no forro da minha casa.
Era uma sociedade secreta, constituída de quatro agentes: Odnanref, Anairam, Hindemburgo e
Pastoff. Um casal de brasileiros, um alemão e um russo. Odnanref era meu nome de guerra, e
eu o chefe da organização. Anairam era Mariana, filha da dona Cacilda, a nossa vizinha da casa
ao lado. Hindemburgo, como já disse, era o cachorro policial. Ele não parecia gostar muito que
a sociedade se chamasse Olho de Gato, mas gato é que enxerga no escuro, não podíamos dar a
ela o nome de Olho de Cachorro, como o referido agente certamente pretendia. E Pastoff era
o coelho cinzento que meu pai tinha me dado para substituir a galinha Fernanda, que havia
morrido de velha. Quem o batizou assim foi o Gerson, meu irmão mais velho, afirmando que
Pastoff queria dizer coelho em russo — afirmação que desconfio não ser verdadeira. Nossos
inimigos mais próximos eram, pela ordem: a Alzira, por viver nos espionando; seu Lourenço, o
jardineiro português, que me passou uma corrida só porque fiz pipi dentro do regador; seu
Policarpo, tio da agente Anairam, que tinha dado umas palmadas na sobrinha quando a
surpreendeu mexendo nos seus guardados, por estar desconfiada de que ele pertencia a uma
organização inimiga; e o Godofredo, que me delatou quando escondi a Fernanda debaixo da
bacia, para que não a servissem ao molho pardo no almoço do Dr. Junqueira. Era talvez o
inimigo mais perigoso, pois vivia dando com a língua nos dentes (que não tinha) — uma língua
preta, só de olhar já dava nojo. Por causa dele tivemos de transferir a sede da sociedade para o
forro: Godofredo prestava mais atenção que uma coruja, lá do seu poleiro à entrada do porão,
onde a principio nos reuníamos. A qualquer coisinha disparava a tagarelar, chamando a
atenção de todo mundo com a sua falação.
Entrávamos no forro de maneira meio complicada: pelo alçapão na parte do teto que ficava
exatamente sobre a mesa da copa. Quando não havia ninguém por ali, colocávamos uma
cadeira em cima da mesa, para alcançar o forro. Depois de subir, tínhamos de recolocar a
cadeira no chão (para que ninguém suspeitasse ao vê-la ali) com a ajuda de uma corda e um
gancho que então recolhíamos. Para sair, era só nos dependurarmos nas bordas do alçapão e
saltar na mesa.
Os agentes que subiam e desciam com mais facilidade eram justamente o Hindemburgo e o
Pastoff, por serem bons de salto.
Fechada a portinhola de entrada, começávamos a reunião, sob o telhado, por entre cujas
frinchas entravam alguns fiapos de luz do sol.
Tínhamos de falar baixo e pisar de leve, para não fazer barulho no forro. Mas podíamos andar
por ele à vontade, em cima de todos os quartos da casa e até mesmo ver o que se passava lá
embaixo por alguma fresta nas tábuas. Só que não havia grande coisa a espionar, senão
alguém trocando de roupa, o que em si não tinha nada que merecesse maiores investigações.
Havíamos deslindado vários mistérios, que desafiariam a argúcia dos mais hábeis detetives e
espiões do mundo inteiro. Conseguimos descobrir quem tinha chupado os ovos no ninho do
galinheiro da casa de nossa agente Anairam: um gambá que, ao ser descoberto, sumiu para
sempre sem deixar vestígios, além de um rastro de mau cheiro. Tínhamos desmantelado uma
rede de contra-espionagem chefiada pelo Gerson. Ele era capaz de verdadeiros prodígios,
como entrar no nosso quarto pela janela do segundo andar (e jamais soube voar como eu)
para abrir meu armário e o do Toninho e ver o que tinha dentro, usando gazuas e chaves
falsas. Graças ainda às nossas investigações, descobrimos que uma nova empregada
conseguira em uma semana furtar objetos de todo mundo dentro de casa, até da própria
Alzira, sua colega de quarto. Mas nossa maior proeza seria a da casa abandonada, motivo da
reunião que eu havia convocado para aquele dia.
ANTES de mais nada, seria preciso tomar várias providências. A mais urgente delas era a
respeito da nossa linguagem cifrada, pela qual obrigatoriamente nos comunicávamos:
— Nãopão popodepemospôs fapalarpar maispais napa linpinguapá dopô pepê. Opô
Gerpersonpon sapabepê fapalarpar nepessapá linpinguapá. Hopojepê epelepê
enpentenpendeupeu tupudopô quepê fapaleipei nopô tepelepefoponepê.
Pela manhã eu tinha telefonado para a agente Anairam, convocando-a para a reunião. Em
geral, quando tínhamos assunto mais longo para falar, usávamos nosso telefone privado, feito
de um barbante passado por cima do muro e tendo em cada extremidade a parte de dentro de
uma caixa de fósforos. Usávamos então linguagem comum mesmo, que mal conseguíamos
escutar. Não dava para usar a língua do pê, como em nossas conversas no telefone de
verdade, que estavam correndo o risco de ser ouvidas e entendidas pelo Gerson.
Propus aos demais que dali por diante a nossa língua oficial passasse a ser o alemão:
— Aus, enter, ínter, ómber, úfter. Sómber vaus-mosómber faus-laus aus-sínter.
Um pouco mais complicado que a língua do pê: cada vogai tinha um som diferente. Mas
Anairam aprendeu logo. Os outros dois agentes naturalmente se limitavam a prestar atenção,
um abanando o rabo, o outro as longas orelhas, pois não falavam língua nenhuma. Mas Hindemburgo, que era alemão, parecia satisfeito porque
passaríamos a falar no seu idioma.
— Muínter-tómber bénter — disse ela. — Vómber-cénter rénter-cénter-beúfter mínter-nhaus
ménter-saus-génter sénter-crénter-taus?
Realmente, ela tinha me mandado naquele dia uma mensagem secreta, e agora estava
querendo saber se eu havia recebido. Limitara-se a atirar por cima do muro um papel em
branco enrolado numa pedra, depois que soube ser perigoso usar o telefone de nossas casas.
Escrevera a mensagem com tinta invisível, é lógico. Costumávamos usar dois processos,
dependendo da ocasião: um era escrever com a caneta molhada em xixi: bastava esquentar o
papel na chama de uma vela, que a escrita aparecia. Outro, era escrever a lápis com força num
papel colocado sobre outro bem molhado. Quando o papel secava, não se via nada escrito
nele: era preciso tornar a molhá-lo para poder ler.
Como aquele papel ainda estava meio úmido, vi logo que ela tinha usado este segundo
processo. Foi só molhá-lo de novo debaixo da torneira, e pude ler:
DE ANAIRAM PARA ODNANREF:
URGENTE INVESTIGARMOS CASA
ABANDONADA POSSÍVEL EXISTÊNCIA
TESOURO.
Ela se referia a uma misteriosa casa na Avenida João Pinheiro, onde sabíamos que não morava
ninguém havia anos. Diziam mesmo que era mal-assombrada. O imenso casarão ficava
fronteiro à rua, com uma varanda ao lado, dando para um jardim. A pintura estava
descascando nas paredes, as janelas apodrecidas e desconjuntadas, o mato tomando conta do
jardim, a hera subindo pela fachada, teias de aranha nas grades da varanda, o portão
enferrujado, morcegos vivendo nas frinchas do telhado. Íamos sempre olhá-la durante o dia,
fascinados: que haveria lá dentro? Não seria de espantar se de noite os fantasmas se
reunissem ali para celebrar o fato de já haverem morrido.
Anairam propôs que fôssemos lá naquela noite, para proceder a uma investigação completa.
Achei prudente sugerir que de noite as coisas ficavam um pouco mais difíceis, não se
enxergava nada! Melhor irmos mesmo de dia. Ela alegou que de dia nós é que corríamos o
risco de sermos vistos.
Sermos vistos por quem? Se lá não morava ninguém?
— Pénter-losómber vínter-zínter-nhosómber.
Pelos vizinhos — ela tinha razão. Respirei fundo, tomando coragem, e dei a palavra de ordem:
iríamos lá naquela noite mesmo.
NAO foi fácil sair de casa de noite. Tive de esperar todo mundo dormir, inclusive o Toninho,
que nunca teve tão pouco sono: ficou lendo na cama até tarde. Foi a minha vez de reclamar:
— Vou apagar essa luz, que estou com sono, quero dormir.
Quando me certifiquei de que não havia ninguém mais acordado, tirei o pijama, me vesti no
escuro e saí pé ante pé. Convoquei o Hindemburgo com um assobio. Ele compareceu logo,
língua de fora, todo animado. Pastoff também se juntou a nós em dois pulos e saímos os três,
para encontrarmos a agente Anairam já à nossa espera no portão de sua casa. Vestia uma capa
de chuva sobre a camisolinha, o que lhe dava um ar de espia de cinema. E fomos juntos pela
rua em direção à Avenida João Pinheiro.
Quando chegamos em frente à casa abandonada, ouvimos o sino da igreja de Lourdes dar
pausadamente doze badaladas, que ficaram vibrando no ar aterradoras: meia-noite! Hora em
que os fantasmas apareciam, saindo de seus túmulos, e o capeta andava solto na escuridão da
noite. Fazia frio e vi que a agente Anairam tremia tanto quanto eu, mas ainda assim levamos
em frente a nossa aventura.
Não foi difícil transpor o portão: um ligeiro empurrão e ele se abriu, devagar, rinchando nas
dobradiças. Fomos avançando por entre o mato do jardim. Alguma coisa deslizou junto a meus
pés — um rato, certamente, ou mesmo um lagarto. Engoli em seco e prossegui a caminhada
ao lado de minha companheira, seguido dos outros dois agentes.
Ao chegar á varanda, ordenei a ambos que ficassem ali e nos esperassem. Não convinha
entrarmos todos ao mesmo tempo. Alguém tinha de ficar de sentinela do lado de fora.
Subimos os degraus de pedra em plena escuridão e tateamos pela parede à procura da porta.
Tínhamos trazido conosco uma caixa de fósforos e uma vela, mas não era prudente acendê-la
ali: poderíamos chamar a atenção de alguém na rua, algum guarda-noturno rondando por lá.
Encontramos a porta e forçamos o trinco. Estava trancada por dentro, não houve jeito de abrir.
Era tão fraca e a madeira parecia podre, eu seria capaz de arrombá-la com um pontapé, só que
faria muito barulho. Preferimos forçar a janela que dava também para a varanda. Era só
quebrar o vidro, meter a mão e puxar o trinco.
Tirei o sapato e bati fortemente com o salto no vidro, que se espatifou num tremendo ruído.
Assustado, Hindemburgo latiu no jardim, por sua vez nos assustando tanto, que nosso
primeiro impulso foi fugir correndo.
Como não acontecesse nada, ao fim de algum tempo resolvemos continuar a nossa missão. Aberta a janela, fui o primeiro a pular. Depois ajudei Anairam a entrar
também. Só então, já dentro de casa, nos arriscamos a acender a vela.
Era uma sala grande, onde não tinha nada, a não ser poeira no chão e manchas de mofo pelas
paredes forradas de papel estampado. A chama da vela, trêmula, projetava sombras que se
mexiam, pelos cantos, ameaçadoras, enquanto avançávamos.
Em pouco vimos que ali embaixo só havia uma cozinha, onde várias baratas fugiram correndo
pelo chão de ladrilhos encardidos, um quartinho e outra sala com janelões dando para a rua.
Mais nada.
Restava subir a escada e investigar o que havia nos quartos lá em cima.
Subimos devagarinho, eu na frente, conduzindo a vela, a agente Anairam se agarrando na
minha blusa. Procurávamos não fazer barulho, mas os degraus de madeira da escada, já meio
podres, rinchavam, dando estalinhos debaixo de nossos pés.
No segundo andar, empurramos a porta do primeiro quarto no corredor e entramos. Era um
quarto grande, mas a vela não dava para ver nada, a não ser a nossa própria sombra projetada
na parede.
Foi quando, de súbito, a luz se acendeu e tudo se iluminou.
No primeiro instante ficamos deslumbrados com aquela claridade e nos voltamos para ver
quem tinha acendido a luz. Soltamos juntos um grito de pavor — parado junto à porta estava
um velho horrendo, alto, barba suja, cabelos desgrenhados, a nos olhar, mãos na cintura:
— Que é que vocês dois estão fazendo aqui? Quem são vocês?
A voz dele era rouca e nos meteu mais medo ainda. Ele avançou em nossa direção e fomos
recuando de costas, até a parede.
— Vocês merecem é uma boa surra — e o velho apanhou um pedaço de ripa no chão.
Quando já estava com o braço erguido para nos bater, vimos por detrás dele surgirem na porta
os agentes Pastoff e Hindemburgo que, alertados pelo nosso grito, tinham vindo a toda pressa
nos defender. O primeiro em três pulos se colocou na frente do velho, onde ficou
saracoteando para distrair sua atenção, enquanto o segundo de um salto se atirava em suas
costas e o derrubava.
Anairam e eu aproveitamos a confusão para fugir do quarto e despencar escada abaixo,
largando pelo caminho a vela ainda acesa. Fomos ultrapassados pelo velho, que ao ver aquele
cachorrão em cima dele sentiu mais medo do que nós.
Nem sei como conseguimos saltar tão depressa pela janela por onde havíamos entrado, e
ganhar a rua num atropelo, aos gritos de acordar o quarteirão inteiro. Quando vimos, os
outros dois agentes estavam a nosso lado, fugindo conosco. Fomos cada um para o seu lado —
Anairam para a sua casa, eu para a minha, Pastoff para sua toca no quintal, Hindemburgo para o porão onde dormia.
NO DIA seguinte ficamos quietinhos, nem ousamos nos reunir. Mas soubemos, pelas conversas
dos mais velhos, de tudo que havia acontecido. Tinha dado até notícia no jornal. A nossa
gritaria chamou a atenção dos vizinhos, que acordaram e viram de suas janelas a casa
abandonada começando a pegar fogo - a vela que deixei cair causou o incêndio. Chamaram os
bombeiros e veio também a polícia, ainda em tempo de prender o velho: era um ladrão
perigoso, que usava aquela casa para guardar objetos roubados. Um dos vizinhos chegou a
declarar aos jornais que tinha visto uns meninos e um cachorrão fugindo da casa em chamas.
Mas não se descobriu nada a nosso respeito, acharam que o vizinho estava vendo fantasmas.
Passado o perigo, alguns dias mais tarde a sociedade secreta Olho de Gato voltou a se reunir,
para avaliar a situação e estudar as próximas missões. Entramos de manhã no nosso
esconderijo e, esquecidos do tempo, ficamos horas comentando os riscos que tínhamos
enfrentado. Até Hindemburgo participou dos debates, a rosnar de alegria lá na língua dele,
pelo grande sucesso de sua atuação, salvando-nos a vida: ganhou um belo naco de carne que
roubamos da Alzira na cozinha, e Pastoff foi premiado com meia dúzia de cenouras.
Estávamos em meio às celebrações, quando ouvimos um barulhinho no canto do forro. A
agente Anairam foi até lá investigar. De repente ela soltou um berro e voltou correndo, como
se mil demônios a perseguissem
— É o gambá!
Apavorados, nos precipitamos todos para a saída no alçapão: era o gambá que havíamos
surpreendido chupando ovos no galinheiro da casa de nossa companheira. Foi abrir a
portinhola e saltamos um atrás do outro para a mesa lá embaixo.
Foi então que se deu o desastre.
Distraídos com a animada reunião, não tínhamos percebido que o tempo havia passado,
estava na hora do almoço. E a família inteira almoçava naquele instante, reunida em torno à
mesa. Pastoff caiu direto dentro da sopeira, saiu aos pulos borrifando sopa em cima de todo
mundo. Hindemburgo, grandalhão, em dois saltos ganhou o chão, não sem antes pisar nos
pratos do papai e da mamãe, espalhando comida para todo lado. Eu caí com as pernas
enganchadas no pescoço do Gerson e Anairam se estatelou de quatro no meio da mesa, uma
das mãos na travessa de arroz, a outra na de batatinhas fritas e os joelhos num pastelão de
carne. Só o gambá não pulou atrás de nós: se limitou a meter o focinho pelo alçapão, para dali
acompanhar os acontecimentos. Mas deu para sentir o fedor de sua presença.
Foi um susto tremendo, verdadeiro pandemônio. Devem ter achado que a casa vinha abaixo.
Nunca conseguiram saber direito o que havia acontecido e muito menos o que estávamos
fazendo no forro da casa. Não havia como entender as nossas confusas explicações.
E foi assim que entrou em recesso a sociedade secreta: os quatro agentes, Odnanref, Anairam,
Pastoff e Hindemburgo se recolheram cada um ao seu canto, e o Departamento Especial de
Investigações e Espionagem Olho de Gato suspendeu temporariamente as suas atividades.
CAPÍTULO V
UMA AVENTURA NA SELVA
VOLTEI então a me empolgar pelas aventuras de Tarzã ou pelas desventuras de Robinson
Crusoé. Tinha vontade de imitá-los. Era pensando em Tarzã que eu subia na mangueira, dava o
meu grito da selva e saltava de galho em galho, chegando mesmo a passar, dependurado
numa corda como se fosse um cipó, para a mangueira do vizinho, do outro lado do muro. E
como se fosse Robinson Crusoé na sua ilha deserta é que resolvi construir uma cabana no
fundo do quintal.
Primeiro finquei quatro estacas de bambu no chão, formando um quadrado. Depois ergui as
paredes, aproveitando as tábuas de uns caixotes vazios que estavam havia tempos debaixo da
escada da cozinha, sem nenhuma serventia. Para isso, usei o martelo, o serrote e outras
ferramentas de meu pai, que eu já sabia manejar com alguma habilidade. Aproveitava, é
lógico, as horas em que ele não estava em casa, pois papai não gostava que usassem as suas
ferramentas. Dizia que a gente depois largava tudo espalhado por aí.
O telhado era feito de uns galhos cruzados, sustentando pedaços de lata de querosene e
tampas de latas de biscoito Aymoré. A porta e a janela, também de madeira, tinham
dobradiças feitas de pedaços de couro de um sapato velho e se fechavam por dentro com uma
tramela: um pedacinho de pau que girava, preso por um prego.
Aos poucos foi surgindo a mobília da minha nova morada: uma mesa feita de tábua e quatro
pedaços de cabo de vassoura, um banquinho que era outra tábua em cima de dois tijolos, e a
cama, que era um saco de aniagem cheio de folhas secas em cima de um jirau improvisado.
Algumas prateleiras de papelão e cabides feitos de pregos completavam a arrumação.
Cuidei também de levar para a cabana uma boa provisão de alimentos furtados da despensa:
frutas, latas de sardinha, salame, queijo — tudo mais que pudesse comer com auxílio do meu
canivetinho, sem precisar de cozinhar.
E passava horas e horas ali dentro, sozinho na minha ilha deserta. Até parecia que ninguém
mais sabia da minha existência. Às vezes minha mãe me procurava por tudo quanto era canto
da casa, o, não me encontrando mandava a Alzira me buscar na cabana:
— Deve estar metido lá dentro, esse menino. A cozinheira batia na porta com uma força que
ameaçava jogar a cabana no chão, mas eu não abria: ficava quietinho, sem fazer barulho,
esperando que ela acabasse desistindo.
Uma noite, enfim, resolvi dormir ali. Pedir que meus pais permitissem, nem pensar: mamãe
vivia dizendo, assim que anoitecia:
— Vem pra dentro, menino, olha o sereno!
E papai não se metia; quem mandava nessas coisas era ela.
Para facilitar, pensei em confiar meu plano ao Toninho, mas achei que ele podia querer
também dormir na cabana, e ali dentro mal cabia um, quanto mais dois. Então esperei que
todos na casa adormecessem, e saí sorrateiro do quarto em direção ao quintal, levando o
travesseiro e o cobertor.
Não tive sorte: naquela noite caiu um temporal, com raios e trovoadas. A água da chuva
inundou a cabana, a ventania arrancou pedaços do telhado. Encolhido num canto, molhado
até os ossos, tive de esperar o dia clarear, debaixo daquele aguaceiro todo. Acabei pegando
uma gripe, por pouco não vira pneumonia. E recebi um castigo bem merecido: fiquei sem
sobremesa uma semana.
Meu pai, curioso, no dia seguinte foi ao quintal apreciar a cabana. Elogiou o meu trabalho, mas
fez vários reparos: isso aqui você não pregou direito; é lógico que tinha de chover dentro, o
telhado não tem inclinação; devia ter cavado um rego ao redor, para a água não entrar por
baixo da parede.
— Você tem jeito. Mas precisa de aprender umas coisas.
E disse para minha mãe, na hora do almoço:
— Acho que o escotismo é que vai ser bom para esse menino.
TONINHO já era escoteiro, mas eu ainda não tinha idade senão para ser lobinho. Ainda assim,
meu irmão me levou para a associação e me alistou.
Em pouco tempo, passei a levar mais que a sério o escotismo. Não tanto pela parte moral —
embora não deixasse de ser interessante amar a Deus sobre todas as coisas, ter uma só
palavra, fazer uma boa ação todos os dias, ser limpo de corpo e alma, amar os animais e as
plantas, respeitar o bem alheio, ser cortês e leal, e outras obrigações dos mandamentos do
escoteiro, que a gente jurava cumprir. O que me atraía mesmo era a parte prática e as
distrações: transmitir mensagem à distância pelo código Morse, com o auxílio de um apito ou
de uma lanterna (logo consegui decorar o alfabeto), ou por semáfora, com duas bandeiras,
como fazem os marinheiros; aprender a dar várias espécies diferentes de nós; acender uma
fogueira com apenas um pau de fósforo ou fazer fogo sem fósforo algum; armar uma barraca;
orientar-me pelas estrelas; tocar tambor; seguir uma pista em pleno mato — e mil outras coisas próprias dos índios e dos exploradores
do oeste.
Duas vezes por semana lá ia eu para a reunião na sede da associação, todo orgulhoso no meu
uniforme de lobinho.
E chegou enfim o dia de realizar o meu grande sonho: participar de um acampamento.
Éramos uns trinta, e eu o único lobinho. Toninho também foi. Ele não devia ter nem doze anos,
mas já era monitor da patrulha do Lobo, havia passado na Primeira Classe e conquistado várias
especialidades, cujos distintivos ostentava na manga arregaçada da blusa caqui. Nem por isso
parecia pretensioso ou arrogante. Pelo contrário: procurava ser humilde e camarada, um
grande companheiro dos demais escoteiros, mesmo os menores como eu. Não era só por ser
meu irmão: eu o considerava o meu melhor amigo e ele acabou se tornando para mim uma
espécie de instrutor. Era quem me ensinava as coisas. Com ele é que aprendi quase tudo do
escotismo, inclusive sobre acampamentos. Agora ia pôr em prática o que aprendera.
Fomos de trem, numa enorme algazarra, entre cantorias e brincadeiras. Descemos em
Itabirito, de onde seguimos a pé até o local onde íamos acampar, fora da cidade e perto de
uma floresta.
Enquanto os demais escoteiros cumpriam cada um sua missão armando o acampamento, a
patrulha do Lobo, chefiada pelo Toninho, foi encarregada de catar galhos secos na mata, que
servissem de lenha para cozinhar e para o Fogo do Conselho, depois do jantar. Fui com os oito
escoteiros, pois ficara mais ou menos agregado a eles, adotado por aquela patrulha como uma
espécie de mascote.
Usando suas machadinhas e facões, os escoteiros se espalharam entre as árvores, cortando
galhos aqui e ali. Também eu levava, com orgulho, dependurada ao cinto, a minha faca de
campanha. Mas não precisei de usá-la, pois, de acordo com as instruções do comandante da
patrulha, minha missão se limitava a recolher do chão todo graveto que encontrasse. Distraído com a tarefa, não reparei que me distanciava dos outros, embrenhando-me cada vez
mais no meio do mato. Quando percebi que já não mais os via, nem mesmo ouvia suas vozes,
procurei regressar, mas não sabia por onde, tantas eram as voltas que havia dado. O mato era
denso ao redor, impedindo que eu visse qualquer coisa à distância de uns poucos metros.
Mesmo a luz do dia mal chegava onde eu tinha ido parar, impedida pela copa das árvores que
se fechavam como um telhado sobre minha cabeça. E o pior é que já começava a anoitecer.
Procurei prestar atenção, aguçando os ouvidos, para ver se escutava alguma coisa. Realmente
deu para captar, ao longe, uns farrapos de conversas e risadas cada vez mais fracas, à medida
que se afastavam, eu não conseguia distinguir em que direção. Gritei, gritei, mas não deviam
ter me ouvido, pois fiquei esperando um tempão e ninguém apareceu. Senti vontade de
chorar, mas resisti: um escoteiro não chora.
Dava para perceber em que lado o sol se afundava no horizonte, pois seus últimos raios
conseguiam varar a parede de árvores, deixando no ar uma cortina de luz. Eu sabia me
orientar pelo sol. Bastava virar a esquerda para o poente, e tinha à minha frente o norte, às
costas o sul e â direita o leste. Mas de que adiantava? Eu não sabia se o nosso acampamento
estava na direção do norte, do sul, do leste ou do oeste. Distraído em olhar o chão à procura
de gravetos, eu não havia prestado atenção a nada, e muito menos por onde ia. O que era
imperdoável num escoteiro, que deve estar sempre alerta.
Agora eu descobria que estava completamente perdido, e em breve seria noite. Sabia que
tinha ido parar bem longe do acampamento. Devia ter me afastado dos outros uma longa
distância, andando sem rumo pela floresta. Era inútil tentar voltar. Eu ia acabar me perdendo
de vez, e quando viessem à minha procura, jamais me achariam.
DECIDI não entrar em pânico e encarar com bom humor a minha situação: o escoteiro é alegre
e sorri nas dificuldades. Quando afinal eu voltasse ao acampamento, possivelmente daríamos
boas risadas pelo que havia acontecido. Eu podia até inventar que me escondera de
brincadeira, para passar um susto nos companheiros. A verdade é que temia receber algum
castigo, pois deixara de cumprir a instrução que havia recebido, de não me afastar muito dos
meus companheiros. Só que eu não poderia mentir: o escoteiro tem uma só palavra, sua honra
vale mais que a própria vida.
E era a minha própria vida que estava em jogo: pelo jeito, eu teria de passar a noite em plena
mata, cercado de perigo por todos os lados.
Procurei fazer um levantamento dos recursos com que eu contava para sobreviver. Havia
deixado no acampamento a mochila com mudas de roupa, cobertor, escova de dentes, e tudo
mais. Mas trazia comigo, dependuradas no cinto ou dentro dos bolsos, várias peças do
equipamento de um escoteiro, e que me seriam valiosas na situação em que me encontrava: a
faca metida na bainha de couro; o rolo de corda; o canivete (não o vermelhinho, mas outro,
dos grandes, marca Solingem, que meu pai me havia dado no Natal, com uma porção de
lâminas, uma pequena lente, serras e até um garfo e uma colher); o cantil cheio d'água; a
marmita portátil; a caixinha de primeiros socorros, cruz vermelha na tampa, contendo
algodão, esparadrapo, um vidrinho de iodo, outro de álcool e uns comprimidos para dor de
barriga e resfriado; uma cadernetinha de notas e um lápis. Por azar meu, só não trouxera o
apito, que agora serviria para chamar facilmente a atenção dos meus companheiros, com SOS
em Morse.
Encontrei também no bolso um tablete de chocolate Gardano e um pacote de pastilhas de
hortelã que havia comprado na estação de Belo Horizonte, antes de tomar o trem. Como
estivesse sentindo fome, comi um pedacinho do chocolate e chupei uma pastilha de
sobremesa. Era preciso tomar cuidado, economizar água e aquela ração de alimento, como
fazem os náufragos. Aquilo talvez tivesse de durar muito tempo, até que eu regressasse à
civilização.
De repente ouvi um ruído a poucos passos.
Subi com a rapidez de um esquilo ao galho mais alto de uma árvore, e só quando me senti a
salvo, enganchado numa forquilha, pude olhar para baixo e ver o que me havia assustado: um
bicho esquisito, todo riscado nas costas, de rabo curto e focinho comprido, que foi passando
calmamente e logo desapareceu. Concluí que devia ser um filhote de anta, ou tapir, que já
tinha aprendido a reconhecer: o Tapir de Prata era a mais alta condecoração que um escoteiro
podia receber.
Achei prudente continuar ali em cima mesmo, onde os perigos eram menores: só as cobras e
as onças, entre os animais ferozes, eram capazes de subir em árvores. Ao que eu soubesse,
naquela mata não devia haver nem uma coisa nem outra, porque do contrário o local do
acampamento não teria sido escolhido tão perto dela.
Para não cair durante o sono, amarrei com a cordinha o meu corpo pela cintura no tronco da
árvore, fazendo para isto uma volta-de-fiel. Vi num galho de outra árvore os olhos acesos de
uma coruja me observando. Se tinha coisa no mundo de que eu não gostava era coruja. Para
mim era bicho de mau agouro. Mas resolvi não acreditar em azar dali por diante: se a coruja
não estivesse gostando da presença daquele estranho ali, azar dela: os incomodados que se
retirem.
Em pouco tempo passei a escutar uma verdadeira orquestra dos mais estranhos sons: uivos, assobios, latidos e até mesmo gemidos. A própria coruja parecia
assustada, e soltava um pio sinistro de arrepiar de medo. A certa altura varou a escuridão uma
espécie de gargalhada que fez meu corpo gelar. Cheguei a fazer o nome-do-padre, pedindo a
Deus que me descobrissem o mais depressa possível. E comecei a assobiar tudo quanto é
música que eu conhecia, para espantar o medo.
Mesmo com aquela zoeira toda nos meus ouvidos, fui aos poucos sendo dominado pelo
cansaço e acabei adormecendo.
QUANDO abri os olhos, havia clareado. O sol subia no horizonte. Assim, á luz do dia, a mata
não parecia tão assustadora. Pelo contrário: tudo era tranqüilo e sem mistério. Vi a um palmo
do meu nariz, pousado no galho onde eu descansava a cabeça, um passarinho preto de barriga
amarela a me olhar com curiosidade, a cabecinha torta para um lado. Depois ele me virou as
costas e foi pulando pelo galho afora até a ponta, de onde levantou vôo.
Eu ouvia na mata uma cantoria doida de passarinhos, formando um só ruído, contínuo e
ensurdecedor. Desamarrei-me da árvore, enrolei a corda, e depois de dependurá-la no cinto,
desci com dificuldade até o chão. A posição forçada de dormir abraçado ao tronco havia
deixado meu corpo doído como se eu tivesse levado uma surra.
Dei alguns passos para desenferrujar as pernas. Ao olhar para o chão, descobri no meio do
capim um ninho com seis ovinhos. Deviam ser de co-dorna. Guardei com cuidado todos eles
nos bolsos da blusa, três de cada lado: ainda dariam um bom almoço.
Estava morto de fome e de sede. Molhei o rosto para espantar o resto de sono, e tomei um
pouquinho de água, que estava com um gosto meio choco, como toda água de cantil. Mas me
matou a sede. Comi mais um pedacinho do chocolate, que havia amolecido com o calor do meu corpo: amassado, colava-se no papel
prateado, lambuzando-me os dedos. Mas me matou a fome. E chupei uma pastilha de hortelã,
enquanto pensava o que faria agora.
Concluí que era inútil ficar ali à espera. Acabaria mais velho que Robinson Crusoé na sua ilha,
antes que me encontrassem. Resolvi ir andando, e escolhi a direção do sol, porque, me
lembrava agora, tínhamos entrado na mata dando as costas para ele. Mais tarde iria descobrir
que era justamente o contrário que eu deveria fazer, pois estava me afastando cada vez mais
do acampamento: tinha entrado na mata de tarde, e agora era de manhã, o sol estava do
outro lado.
Para poder avançar, eu precisava às vezes abrir caminho no mato com a faca: arbustos, cipós e
galhos das árvores se entrelaçavam, formando uma verdadeira rede. Mas fui conseguindo
seguir em frente, até chegar a uma pequena clareira, onde me sentei numa pedra para
descansar.
Enxuguei o suor do rosto, tomei mais um gole d'água, e estava pensando se comia ou não
comia outro pedacinho do chocolate, quando ouvi uma espécie de assobio bem baixinho,
perto de mim. Olhei para o lado e vi, meio erguida a dois palmos de minha cara, a cabeça de
uma cobra enorme, a lingüinha entrando e saindo, pronta para dar o bote.
Fiquei paralisado de pavor, a olhá-la também. Mas não perdi a calma: tirei devagarinho a corda
da cintura, armei um laço fazendo um lais-de-guia e segurei-a no ar com as duas mãos,
esperando o bote. Assim que a cobra avançou a cabeça, fui mais rápido: joguei o laço sobre ela
e apertei com toda força. Depois fiquei de pé e comecei a rodar a corda com violência sobre a
cabeça, a cobra de mais de um metro dependurada girando no ar, já estrangulada, a boca
aberta... Atirei-a no chão e acabei de matá-la, esmigalhando a cabeça com a pedra onde
minutos antes estava sentado. Enxuguei o suor do rosto, suspirando aliviado, me deu até
vontade de soltar o grito de vitória do Tarzã.
Depois de tornar a enrolar a corda e dependurá-la na cintura, fui-me embora dali.
O CAMINHO aberto a facão pela mata poderia indicar aos meus companheiros por onde eu
tinha seguido. Mas dali por diante, como a vegetação já não era tão cerrada, fui deixando os
sinais de pista de vinte em vinte passos. Uma seta riscada no chão ou na casca de uma árvore,
ou feita de pedrinhas e gravetos, indicando o caminho a seguir. Um x, indicando o caminho a
evitar. Se saltava um pedregulho, um buraco ou um tronco caído, desenhava uma seta atrás de
outra com dois risquinhos entre elas, o que queria dizer: salte o obstáculo. O sinal de perigo,
que era um triângulo, não tinha como deixar: havia perigo por todo lado. E o corpo da cobra
morta na clareira, que eles haviam de encontrar, era prova disso.
Quando vi por entre as árvores que o sol estava no alto do céu, decidi parar. Meio-dia — era
hora do almoço. Me lembrei dos ovos de codorna, verifiquei com pena que um deles havia
quebrado: meus dedos saíram do bolso da blusa lambuzados de gema e clara. Mas restavam
cinco, e resolvi cozinhá-los.
Para isso, armei uma fogueirinha de gravetos, entre duas pedras grandes, pus um pouco de
água do cantil na tampa da marmita com os ovinhos dentro e apoiei-a nas pedras. Depois
fiquei longos minutos a tentar fazer fogo na ponta de um pedacinho de papel da minha
caderneta, concentrando sobre ele o calor de um raio de sol através da lente do meu canivete.
Pude enfim ver sair do papel uma fumacinha, depois uma chama, que enfiei debaixo dos
gravetos, e logo um foguinho fazia ferver a água na tampa da marmita, cozinhando o meu
almoço. Descasquei com cuidado os ovinhos e comi um por um. Estavam deliciosos. Só não
comi a casca porque enganei a fome com o resto do chocolate. Como já estivesse
praticamente no fim, tive de lamber o papel prateado. Mais uma pastilha de hortelã, e estava
finda a minha refeição.
Antes de apagar o fogo, tive uma idéia que logo pus em prática. Joguei nas chamas algumas
folhas verdes, que começaram a fazer subir ao céu um denso rolo de fumaça. Então tirei a
blusa, cobrindo com ela a fumaça e deixando escapar um pouquinho de cada vez, como fazem
os índios, de maneira que subissem no ar três pontos, três traços e três pontos, que era o sinal
de SOS em código Morse. Lá do acampamento os escoteiros certamente veriam no céu o meu
pedido de socorro. Depois apaguei o fogo e segui em frente.
O chocolate me deu sede e descobri, desolado, que não tinha mais que um gole de água no
cantil. Outra imperdoável distração para um escoteiro: havia apagado o fogo com a água da
tampa da marmita, em vez de despejá-la de volta no cantil. Tinha pensado que ela não serviria
para beber, porque estava muito quente... Nunca me senti tão burro, ao descobrir a bobagem
que havia feito.
Mas Deus estava mesmo me protegendo: a mata foi rareando à medida que eu avançava, e
terminou num rio largo e caudaloso. Água é que não ia mais me faltar. E na outra margem
avistei um milharal cheio de espigas... Ali estava o meu jantar! Já tinha pensado em me valer
de raízes e frutos silvestres para matar a fome, mas temia que fossem venenosos.
Era preciso atravessar aquele rio, e só mesmo a nado.
TIREI toda a roupa, aproveitando para tomar um banho refrescante, e me distraí catando
todos os carrapatos que encontrei no corpo. Depois fiz com roupas, sapatos e tudo mais uma
trouxinha, que amarrei na cabeça com a corda, e fui nadando bem devagarinho para que ela
não se molhasse. A correnteza me arrastava rio abaixo, mas ainda assim eu ia conseguindo atravessar, e até era bom, pois me aproximava do milharal.
Quando ganhei a outra margem, depois de descansar um pouco e vestir a roupa, apanhei duas
espigas, que descasquei e meti na marmita com água do rio. Usei para cozinhá-las o mesmo
processo que tinha usado com os ovinhos de codorna. Só que desta vez não havia mais sol,
tive de empregar o processo dos índios, que era bem mais difícil: rolar um pauzinho entre as
palmas das mãos, de maneira que a ponta se esfregasse noutro pauzinho até sair fogo.
Desta vez me lembrei de jogar de volta a água no cantil. Quando esfriasse, serviria para beber,
pois, além do mais, tinha sido fervida e estava livre dos micróbios.
Só então me ocorreu que eu não deixara sinal de pista no outro lado do rio. Meus
companheiros, se estivessem me seguindo, não saberiam que eu o havia atravessado.
Como já estivesse escuro, fiquei por ali mesmo, no milharal, onde não tinha mais perigo: era
plantação feita por mão de homem, que denunciava haver civilização por perto. Fiz uma cama
de palhas de milho e dormi, depois de me regalar com as duas espigas que havia cozinhado e
de beber a água do cantil, que já estava fria e gostosa.
De manhã acordei com o sol na minha cara. Depois de lavar o rosto no rio e chupar uma
pastilha de hortelã, fui andando ao longo da margem, até encontrar o que procurava: uma
casinha de lavradores.
Era um casal de jecas que não entenderam nada do que eu contava, como se eu fosse um
bicho raro surgido de repente na frente deles. Mas acabaram me dando um pedaço de broa de
milho e falando numa estrada que passava ali perto. A meu pedido, me ensinaram como
chegar até lá. Agradeci, me despedi deles e parti.
Achei a estrada, que era de terra, mas muito melhor andar nela que no meio do mato. Logo
passou um caminhão e pedi uma carona. O motorista, um preto muito bonzinho, me deu um
pedaço de rapadura e ouviu com admiração a minha história, enquanto seguíamos em direção
a Itabirito, levantando poeira. Perguntou na estação onde era o acampamento dos escoteiros
e fez questão de me levar até lá.
Fui recebido e aclamado como um herói, em vez de ser castigado como esperava: disseram
que aquilo poderia acontecer com qualquer um. Fiquei sabendo então a aflição que meu
desaparecimento tinha causado. A tropa inteira passou aqueles dois dias à minha procura e
ainda havia gente me procurando. A patrulha do Lobo, comandada pelo Toninho, havia
encontrado a cobra que eu matara e visto no céu os meus sinais de fumaça. Seguiram as
marcas que eu fora deixando pelo caminho e ao chegar ao rio, concluíram, inconsoláveis, que
eu havia morrido afogado tentando atravessá-lo.
Meu irmão ficou desarvorado. Quando mais tarde nos reencontramos, em meio à alegria
geral, decidimos não contar nada em casa, para não afligir nossos pais. Mas, como sempre
acontece, eles acabaram sabendo, e papai achava graça, pedia que eu narrasse a façanha para
seus amigos.
Naquela noite, depois de um excelente jantar, durante o Fogo do Conselho tive de contar com
detalhes a minha aventura. Todos se admiraram e os chefes, impressionados, balançavam a
cabeça dizendo que se tudo aquilo que eu dizia fosse verdade, então eu merecia uma
condecoração, talvez mesmo o Tapir de Prata.
E era tudo verdade — juro que só acrescentei uma mentirinha: disse que não tinha tido medo
da onça que me fez subir na árvore.
CAPÍTULO VI
O VALENTÃO DA MINHA ESCOLA
DEPOIS disso tive de enfrentar outra espécie de perigo: o de levar uma surra do valentão da
minha escola.
O nome dele eu não me lembro, mas todo mundo na classe o chamava de Birica. Era pelo
menos uns dois anos mais velho que o resto da turma.
A verdade é que os colegas tinham medo dele. Birica falava e os outros baixavam as orelhas.
Eu mais do que todos, pois era dos menores.
Vai um dia o Birica resolve implicar comigo. Ele e outro menino, conhecido como Jacaré. Não
que o Jacaré fosse forte feito o Birica: era mais ou menos do meu tamanho. Tinha o queixo
para a frente, de aparar goteira, e quando abria a boca parecia um jacaré — daí o apelido.
Deste eu me lembro o nome: Sinfrônio. Por isso mesmo ele preferia ser chamado de Jacaré.
Pois o Jacaré, de quem ninguém gostava (tinha fama de ladrão, furtava tudo que a gente
esquecesse na carteira), andava sempre adulando o Birica, e acabou querendo bancar também
o valentão. Do Jacaré ninguém tinha medo, mas o Birica havia passado a protegê-lo, e ai de
quem se metesse com ele! Um dia o Tininho, só porque deu uma sardinha no Jacaré, levou um
tostão do Birica que deu com ele na enfermaria, ficou sem poder andar direito uma semana.
Mas não contou para a diretora quem o tinha machucado. Era essa a lei entre nós: ninguém
entregava ninguém. E além do mais aquilo era coisa à toa, vivíamos dando sardinha, tostão,
cacholeta e coque uns nos outros.
Para quem não sabe: sardinha é uma chicotada de raspão, com o dedo indicador, em quem
quer que ouse arrebitar o traseiro. Costuma doer de verdade, quando pega de jeito. Tostão é
uma joelhada de lado na coxa da vítima, também dói muito. Cacholeta é uma pancada na
cabeça de um infeliz, com as mãos presas uma na outra, depois de soprar entre elas como a
enchê-las de vento. Costuma até tontear. O coque, ou cascudo, é a mesma coisa, só que com
uma só mão.
Havia outras brincadeiras perversas ou mesmo perigosas, como a cama de gato: enquanto um
ficava de quatro atrás do distraído, outro o empurrava pela frente, fazendo com que tropeçasse e caísse estatelado de costas no chão. Houve mais de uma
cabeça quebrada em conseqüência dessa gracinha.
Numa das brincadeiras, nunca cheguei a saber onde estava a graça: um dos meninos estendia
firmemente dois dedos da mão direita (o fura-bolos e o pai-de-todos), para que outro menino,
com os mesmos dedos, desferisse neles uma pancada com toda força; passava então a ser a
vez do outro, que fazia o mesmo; ao fim de alguns minutos dessa distração idiota, estavam
ambos com os dedos vermelhos e inchados, latejando de dor. Para quê? Para nada.
Algumas eram brincadeiras inofensivas, como a gata parida: dois meninos, sentados em cada
extremidade do banco, iam apertando os do meio até que não houvesse mais espaço para
ninguém ficar sentado entre eles e, um a um, fossem espirrando para fora.
De outras brincadeiras, a vítima era a própria professora. Como dona Risoleta, por exemplo,
que dava aula de religião.
MAGRICELA como a Olívia Palito, mulher do Popeye, parecia um galho seco dentro do vestido
escuro. Era antipática e ranzinza. Usava óculos de lentes grossas: não enxergava direito, vivia
confundindo um aluno com outro.
A aula de religião não contava ponto nem influía na nossa média, mas a diretora nos obrigava
a freqüentar.
Um dia apareceu uma barata na sala de aula. Descobrimos então que dona Risoleta tinha
verdadeiro horror de baratas: soltou um grito, apontou a bichinha com o dedo trêmulo e subiu
na cadeira, pedindo que matássemos. Era uma barata grande, daquelas cascudas, de salto alto
A classe inteira se mobilizou para matá-la. Foi aquele alvoroço: empurrões, cotoveladas,
pontapés, risos e gritaria, todos querendo atingi-la primeiro. E a coitada feito barata tonta,
escapando por entre nossas violentas patadas no chão. Até que, de repente, tive a sorte de dar
com ela passando a correr entre meus pés — esmigalhei-a numa pisada só.
Fui aclamado como herói, vejam só: herói por ter matado uma barata. Até dona Risoleta me
agradeceu, trêmula, descendo da cadeira e me dando um beijo na testa. Esse beijo a turma
não me perdoou, durante muito tempo fui vítima da maior gozação: diziam que dona Risoleta
estava querendo me namorar.
Deste episódio nasceu uma brincadeira que passamos a fazer em toda aula de religião, duas
vezes por semana. Alguém trazia uma barata viva dentro de uma caixa de fósforos vazia, para
soltar na saia de aula entre as carteiras, até que um aluno denunciasse a sua presença. Quando
não era a dona Risoleta que soltava um gritinho:
— Uma barata!
Às vezes mais de um menino trazia de casa para soltar na sala a sua barata dentro da caixa de
fósforos ou de uma latinha. Tínhamos de combinar antes, pois se aparecessem muitas de uma
vez, dona Risoleta acabava desconfiando.
Um dia ela foi reclamar providências da diretora, dizendo que o prédio era velho, estava
precisando de uma limpeza em regra, vivia cheio de baratas. Naquele tempo não havia
dedetização, de modo que a diretora não tomou providência nenhuma, nunca tinha visto
barata na escola, aquilo eram fricotes da dona Risoleta.
E a coisa ficou por isso mesmo, de vez em quando aparecendo uma baratinha, para alegrar a
aula de religião. Houve uma que subiu pela perna da professora e foi se esconder debaixo da
sua saia. A mulher deu um pulo de três metros de altura, se sacudindo toda, aos berros, como
se estivesse possuída do demônio, por pouco não se atirou pela janela.
Até que o Dico um dia esqueceu na carteira uma caixa de fósforos com a barata dentro. Sem
saber para que diabo aquele aluno havia de ter trazido fósforos de casa, se todos nós éramos
crianças, não fumávamos, dona Risoleta, curiosa, abriu a caixa. A barata saltou em sua cara
num vôo aflito, largando pedaços de asa no ar, e se refugiou nos seus cabelos. A coitada só
faltou desmaiar de susto. Saiu correndo feito doida com barata e tudo e foi nos denunciar à
diretora.
O Dico acabou suspenso por uma semana, como responsável por todas as baratas que já
tinham aparecido. Com isso, ficou sob ameaça de perder o ano, por falta de freqüência.
Em solidariedade a ele, resolvemos fazer greve, matando as aulas de religião.
Foi quando alguém teve idéia melhor para nos vingarmos:
— Vamos trazer para a sala outra coisa.
— Uma lagartixa — sugeriu um.
— Um rato — sugeriu outro.
— Um sapo — sugeriu um terceiro.
Concluímos que lagartixa não fazia mal a ninguém, era capaz de não assustar dona Risoleta. A
menos que jogássemos uma pelo pescoço dela abaixo, por dentro do vestido — e todos riam,
imaginando a cena. Durante o recreio as conversas e conspirações fervilhavam. Como e onde
conseguir apanhar um rato vivo e trazê-lo para a escola sem que ninguém visse? Acabamos
preferindo a idéia do sapo, de que estava cheio o córrego do Leitão, ali perto da escola. E no
próprio lago da Praça da Liberdade, onde eu morava, tinha vários sapinhos, a questão era
conseguir pegar um.
Mas a meninada era ativa: no dia seguinte mesmo o Tição, um crioulinho de pele brilhante de
tão preta, trouxe, presa com um barbante, uma perereca verde que era uma beleza. Todo mundo se juntou, querendo ver:
— Mostra ela para nós, Tição.
— Onde é que você pegou?
O negrinho ria, os dentes muito brancos:
— Lá perto de casa tem uma porção.
E punha a perereca na palma da mão, para que todos vissem. Ela ficava ali, encolhida,
inchando e desinchando a barriga, olhos arregalados. De repente, como se fosse de mola, dava
um salto no ar em direção à cara de um. Todos se espalhavam, assustados:
— Cuidado, que se ela mija no seu olho você fica cego.
— É só sapo que faz isso. Perereca não mija não.
Se não fosse o Tição conter com mão firme o barbante que a prendia pela cintura, ninguém
segurava a perereca. E ele a guardava no bolso do uniforme, onde ela ficava se mexendo.
A idéia era botá-la dentro da bolsa que dona Risoleta deixava em cima da mesa, enquanto
dava aula. Num momento em que ela estava de costas, escrevendo a lição no quadro-negro, o
próprio Tição realizou a façanha: foi até lá com passo macio de gato, abriu a bolsa, desatou o
barbante, jogou a perereca dentro e tornou a fechar, voltando de mansinho para a sua
carteira. Na vista de todo mundo, menos da professora: tivemos de fazer força para conter o
riso.
Dona Risoleta não abriu mais a bolsa até o fim da aula. Para não ficarmos sem saber o que
aconteceria, confiamos a dois colegas a missão de segui-la de maneira disfarçada.
Não precisaram ir muito longe. No dia seguinte ouvíamos deles, na hora do recreio, entre
gargalhadas, o que havia acontecido. No bonde a caminho de casa viram quando ela abriu a
bolsa para tirar o dinheiro e pagar ao condutor. O que saiu foi uma perereca, a pular adoidada
sobre a cabeça dos passageiros. Um pandemônio: alguns até saltaram do bonde andando, a
começar pelo próprio condutor.
Naquele mesmo dia dona Risoleta comunicou à diretora que não daria mais aula para nós.
E HAVIA a aula de música. Era também facultativa, mas íamos todos de bom grado, por ser
muito divertida, pela bagunça que fazíamos. Quem ensinava era o seu Asdrúbal, o único
professor homem. Tinha uma careca brilhante, uma cara de lua e um sorriso bom. A voz era de
barítono. Constava que cantava ópera, já se havia apresentado no Teatro Municipal. Com os
bracinhos curtos, balançando o corpo roliço de João-Teimoso, regia o canto da molecada:
Viva o sol
Do céu de nossa terra
Vem surgindo
Atrás da linda serra.
Dividia a turma em grupos, conforme o tom de voz, e cada grupo começava a cantar num
momento diferente, para compor um coro de várias vozes desencontradas. O que terminava
sempre em algazarra, pois fazíamos questão, para desespero dele, de cantar tudo errado,
entrando fora de hora e de compasso.
Seu Asdrúbal se sentava no piano, de costas para nós, tentando impor alguma afinação ao
nosso coro de miados de gato. O aluno mais perto da porta se levantava, sorrateiro, e
escapulia, fechando-a atrás de si, enquanto outro tomava o seu lugar. O professor se voltava
para fiscalizar a turma, que fingia levar a sério a cantoria. E não dava por falta do fujão, e de
outro, e mais outro, e outro ainda... À medida que olhava, ia ficando intrigado, estranhando
alguma coisa, sem chegar a perceber que o número de alunos era cada vez menor. Até que,
dos trinta, restavam apenas uns doze, e onze, dez... Nem assim o homem, distraído lá com a
sua música, dava pela coisa. Até o dia em que sobraram apenas seis e tão logo seu Asdrúbal se
voltou para o piano, escaparam todos de uma vez, em debandada silenciosa, porta afora,
deixando a sala vazia.
Havia também uma brincadeira, que era botar rabo nas professoras.
Brincadeira perigosa, que às vezes acabava mal. Era um rabo de papel, podia ser de tiras de
jornal ou mesmo de pano, como os dos papagaios que empinávamos. Bastava amarrá-lo num
alfinete torto como um anzol e dependurá-lo com delicadeza na parte de trás da saia, quando
a professora estivesse de costas.
Um dia o menino escolhido para realizar a proeza foi um caolhinho de nome Noraldino, que
ficava uma fera quando o chamávamos de Zarolho. Pois o Zarolho, talvez por não enxergar
direito, deu foi uma boa alfinetada no traseiro da dona Zelma, professora de desenho, uma
gorducha, a quem chamávamos de dona Zebra, por ser muito brava e viver dando reguada na
mão da gente quando desenhávamos. Dona Zebra soltou um relincho mesmo de zebra e se
virou, desferindo um tapa na cara do Zarolho, que no impulso saiu da sala para fora catando
cavaco e nunca mais voltou, pois no mesmo dia foi expulso da escola.
DE TAIS brincadeiras o Birica não participava. Dizia que eram coisas de criança, ele tinha mais o
que fazer. Na verdade a sua preocupação era com o que havia de malicioso ou imoral na
escola. Não vou dizer que fosse dele tudo o que aparecia escrito ou desenhado na parede das
privadas, mas era quem procurava iniciar os menores na prática daquilo que os desenhos ou
escritos representavam.
Até que um dia resolveu implicar comigo.
Tínhamos um colega, o Tininho — acho que já falei nele. O tal que levou o tostão do Birica. O
Tininho, o Dico (que foi suspenso por causa da barata) e eu éramos muito amigos. Todo dia
voltávamos juntos da escola e nos separávamos na esquina da praça, no alto da Avenida João
Pinheiro. Tininho ia para um lado, eu para outro e o Dico seguia em frente. Na hora que cada
um tomava seu rumo, nossa despedida era muito tumultuada, pois estávamos jogando "dorme
com essa", ou seja, um tapinha, onde quer que acertasse, que cada um se empenhava em ser
o último a dar:
— Dorme com essa! — dizia um, encostando a mão no outro.
— Dorme com essa! — reagia o outro, devolvendo o gesto.
Ganhava quem fosse mais rápido, como no duelo entre o mocinho e o bandido. E era aquela
correria rua afora, um atrás do outro, para revidar.
Sendo três, a situação se complicava: às vezes o perseguidor de um passava a ser perseguido
pelo outro, e este pelo primeiro: ficávamos horas nessa brincadeira, e mesmo chegando tarde
em casa e ganhando pito, não desistíamos: era uma questão de honra não "dormir com essa".
Naquele dia, o Tininho disse para o Dico, na hora do recreio, se vangloriando:
— Você ontem dormiu com essa.
— Hoje quem vai dormir é você — retrucou o Dico.
O Jacaré, que ouvia a conversa, meteu o bedelho sem ser chamado, perguntando com ar de
deboche:
— Que conversa de fresco é essa?
O Tininho, que não gostava dele, como aliás todo mundo, ficou ofendido por ter sido chamado
de fresco e respondeu mandando o nome da mãe. O Jacaré avançou contra ele. Dico logo
saltou entre os dois para impedir:
— Covardia, ele é menor do que você.
— Xingou minha mãe.
— Então bate em mim primeiro.
— Vem no braço se você ê homem — e Jacaré olhou ao redor, já procurando o Birica.
Coloquei-me entre os dois e cuspi no chão, como mandava o código:
— Quem for homem pisa aqui primeiro. Dico foi o primeiro a pisar no cuspe. Mas o
Tininho, enraivecido, não queria saber daquilo:
— Deixa ele comigo, Dico! Eu quebro a cara dele! — e, pequenino diante do outro, ainda assim
tentava acertar com um soco a queixada do Jacaré. O que me deixou na maior admiração, pois
o Tininho, bem menor do que eu, demonstrava muito mais coragem: no fundo, eu tinha feito
corpo mole e deixado o Dico passar à frente para defendê-lo, pois não estava com a menor
vontade de brigar com o Jacaré.
Foi quando se ouviu uma voz atrás de nós:
— Que é que está acontecendo aí?
Era o Birica, abrindo caminho entre a meninada que se juntara ao redor, para apreciar a briga.
Todos, reverentes, o deixaram se aproximar. Mãos na cintura, ele se colocou na minha frente:
— Provocando briga aí, seu covarde?
Mais tarde eu não saberia explicar como pôde acontecer o que se passou então. Violência não
era comigo. Preferia resolver as coisas com calma, pois quando a gente perde a cabeça acaba
fazendo bobagem e depois se arrepende. Se me vi estimulando o Dico a brigar com o Jacaré,
foi só porque ele estava defendendo o Tininho que, embora valente e brigão, era muito mais
fraco, ia levar uma surra daquelas. Não fiz o mesmo que o Dico porque na verdade eu não
conseguia sentir raiva do Jacaré a ponto de brigar, como não sentia de ninguém. Quando
alguém fazia alguma coisa contra mim, antes de ficar com raiva eu pensava que ninguém pode
ser tão ruim a ponto de desejar mal aos outros. Se aconteceu é porque ele perdeu a cabeça,
ou então porque não entende direito as coisas, é burro ou ignorante — se eu fosse assim
também, em seu lugar faria o mesmo.
Só que, por causa disso, não acho que possam me chamar de covarde.
Pois eu, que seria capaz de tudo para evitar uma briga com o Jacaré, deixando de imitar o Dico
e dando aos outros e até a mim mesmo a impressão de estar com medo, no instante em que
ouvi aquela palavra, não sei o que me deu: como se outra pessoa é que tivesse reagido e eu
vendo tudo do lado de fora.
O que vi foi meu braço se erguer, como impulsionado por uma mola, e desferir violenta
bofetada na cara do Birica.
O pasmo ao redor foi total. Ninguém podia acreditar no que tinha visto. Apanhados de
surpresa, todos agora esperavam, num silêncio respeitoso, o que estava para acontecer.
Birica chegou a cambalear, levando a mão ao rosto, que logo ficou vermelho, com a marca dos
meus dedos. Eu tinha batido mesmo com força, uma força maior do que sabia ter. Vi que ele
me olhava, atônito, um olhar abobalhado de quem não sabe o que pensar. Instintivamente
protegi o rosto com os punhos fechados, me preparando para a briga e esperando a reação
dele, que seria de me massacrar. Me preparei até para morrer, quando ele, enorme diante de
mim, desfechasse o primeiro soco. Em vez disso, o que aconteceu não podia ser mais
surpreendente para mim e para todo mundo. Ele fez um gesto vago com a mão no ar, e as
palavras saíram gaguejadas de sua boca:
— Não precisa se ofender, Fernando. Eu falei brincando... Me desculpe.
Naquele instante, por pouco o meu queixo não caiu de tanto espanto, não ficou maior do que
o do próprio Jacaré, que assistia a tudo de boca aberta ali ao lado: o Birica me pediu desculpa!
Afinal entendi o que havia acontecido: Birica, o valentão, aquele com quem ninguém podia, e
que me chamara de covarde, é que estava acovardado! Como a desejar fazer as pazes, ele
agora esboçava um gesto de quem queria mas não ousava botar o braço no meu ombro:
— Eu falei brincando — repetiu, e tentou sorrir.
Daquele dia em diante, não passei a ser o valentão da escola, como seria de esperar — mas
ninguém mais respeitou a valentia do Birica.
CAPÍTULO VII
O MENINO NO ESPELHO
POUCO tempo depois eu iria viver uma das experiências mais fantásticas da minha vida.
Tudo começou com aquela máquina fotográfica, marca Agfa, em forma de caixotinho. Gerson
não deixava que ninguém pusesse a mão nela, a não ser quando ele próprio queria ser
fotografado. Então contava seis passos e ia postar-se diante da máquina, enquanto alguém, a
seu pedido, de costas para o sol, com o cuidado de quem segura um alçapão com passarinho
dentro, apenas apertava o botão. Quase sempre aparecia na foto, além do fotografado, a
sombra comprida de quem batia a chapa.
As câmeras fotográficas eram verdadeira preciosidade, e quem tinha uma, como o Gerson,
despertava inveja em todo mundo.
Um dia ele me disse que ia fazer uma experiência. Mandou que eu ficasse junto ao muro
branco do quintal, como se estivesse conversando com alguém. Depois de bater a foto, fez
com que eu passasse para o lugar desse alguém, e sem rodar o filme tornou a fotografar.
Revelada a foto, veio me mostrar o resultado, me enchendo de assombro: um retrato em que
eu aparecia duas vezes, como se fosse outra pessoa, conversando comigo mesmo!
Tenho até hoje essa foto, que deu margem a tantas fantasias, quando eu era menino: ficava a
contemplá-la, fascinado, pensando como seria bom se realmente existisse uma pessoa igual a
mim.
Minha aspiração naquela época era esta: encontrar um sósia. Não pensava em outra coisa,
desde que assisti a um filme em que o ator fazia dois papéis: vai passando por uma rua e de
repente esbarra num homem absolutamente igual a ele. Os dois se olham, espantados. Só que
um era detetive, o outro era bandido, o que acabava criando uma grande confusão.
Mais tarde fiquei sabendo que o truque era o mesmo que o Gerson havia usado com a sua
máquina de retratos: expor duas vezes o mesmo filme.
A partir de então, passei a procurar um sósia. Onde quer que eu fosse e houvesse outros
meninos como eu — na escola, no circo, no cinema, no campo de futebol — buscava encontrar
alguém parecido comigo. E procurava com tanta intensidade, com tamanha certeza de encontrar, que não tinha dúvida alguma: mais
cedo ou mais tarde esbarraria com um, como o detetive naquela fita.
Só não poderia jamais imaginar que seria da maneira como um dia aconteceu.
Nas minhas buscas, não deixei de encontrar meninos bastante parecidos comigo. Na
associação de escoteiros havia um, chamado Luisinho, que era a minha cara, cuspida e
escarrada. Mas só de longe: se a gente observasse de perto, acabava descobrindo uma porção
de diferenças. Ele era um pouquinho mais baixo do que eu, meio dentuço e tinha os cabelos
mais claros. Sua voz também era diferente da minha, fina e esganiçada, e ao falar ele tinha o
hábito, que eu não tinha, de franzir a cara como quem está com dor de barriga. Enfim: era
completamente diferente de mim.
Mesmo os gêmeos que eu conhecia não eram lá tão iguais como se dizia. Na nossa classe havia
dois irmãos gêmeos, o Beleléu e o Catatau. Eram parecidíssimos, a ponto de ser confundidos
pela professora. Mas se a gente reparasse bem, descobria que um tinha o rosto mais fino que
o outro, não sei se o Beleléu ou o Catatau, e um tinha uma berruga no queixo que o outro não
tinha, não sei se o Catatau ou o Beleléu. De qualquer maneira, tivesse eu um irmão gêmeo
como eles, e já me daria por muito satisfeito.
POR que diabo eu queria encontrar alguém igual a mim? É o que ficava pensando, a olhar a
minha própria figura refletida no espelho. Eu não achava graça nenhuma em mim, confesso
que desde então eu já não era o meu tipo. Mas era comigo mesmo que eu tinha de viver e,
neste caso, um menino feito aquele ali diante de mim é que eu gostaria de encontrar, sem
tirar nem pôr. Um menino que, em tudo e por tudo, fosse absolutamente igual a mim —
porque do contrário não tinha graça. Que falasse como eu, se vestisse como eu, andasse como
eu, pensasse e sentisse como eu. Juntos, nós dois seríamos capazes de tudo, das melhores
brincadeiras, e até mesmo conquistar o mundo.
E ficava horas me observando, fazendo caretas e gatimonhas para a minha figura, falando
comigo mesmo como se fosse outra pessoa:
— Agora, por que você não cala a boca e escuta o que eu estou falando? Por que tem de ficar
me imitando, repetindo tudo que eu faço?
Levantava a perna, e ele levantava também, ao mesmo tempo. Abria os braços, e ele fazia o
mesmo. Cocava a orelha, e ele também.
Mas o que mais me intrigava era a única diferença entre nós dois. Sim, porque um dia
descobri, com pasmo, que enquanto eu levantava a perna esquerda, ele levantava a direita;
enquanto eu cocava a orelha direita, ele cocava a esquerda. Reparando bem, descobria outras diferenças. O escudo da escola, por exemplo, que eu trazia colado no bolsinho esquerdo do uniforme, na blusa dele era no direito.
Para testar, coloco a mão direita espalmada sobre o espelho. Como era de esperar, ele ao
mesmo tempo vem com a sua mão esquerda, encostando-a na minha. Sorrio para ele e ele
para mim. Mais do que nunca me vem a sensação de que é alguém idêntico a mim que está ali
dentro do espelho, se divertindo em me imitar. Chego a ter a impressão de sentir o calor da
palma da mão dele contra a minha. Fico sério, a imaginar o que aconteceria se isso fosse
verdade. Quando volto a olhá-lo no rosto, vejo assombrado que ele continua a sorrir. Como, se
agora estou absolutamente sério?
Um calafrio me corre pela espinha, arrepiando a pele: há alguém vivo dentro do espelho! Um
outro eu, o meu duplo, realmente existe! Não é imaginação, pois ele ainda está sorrindo, e
sinto o contato de sua mão na minha, seus dedos aos poucos entrelaçarem os meus.
Puxo a mão com cuidado, descolando-a do espelho. Em vez da outra mão se afastar, ela vem
para fora, presa à minha. Afasto-me um passo, sempre a puxar a figura do espelho, até que ela
se destaque de todo, já dentro do meu quarto, e fique â minha frente, palpável, de carne e
osso, como outro menino exatamente igual a mim.
— Você também se chama Fernando? — pergunto, mal conseguindo acreditar nos meus olhos.
— Odnanref — responde ele, e era como se eu próprio tivesse falado: sua voz era igual à
minha.
— Odnanref?
Sim, Odnanref. Fernando de trás para diante. Era em tudo semelhante a mim, menos em
relação à direita e à esquerda, que nele eram ao contrário, sendo natural, pois, que seu nome,
isto é, o meu, fosse ao contrário também. Por uma coincidência, Odnanref era o meu nome de
guerra, na sociedade secreta Olho de Gato.
— Por isso mesmo — confirmou Odnanref, dando-me um tapinha nas costas e rindo, feliz: —
Foi você que me desencantou, adotando o meu nome. Senão eu jamais teria vindo, pois a lei
do mundo dos espelhos proíbe terminantemente que a gente venha ao mundo de vocês. A
menos que alguém consiga desvendar o nosso encanto. O meu era esse, e você adivinhou. Eu
só estava esperando que você me puxasse, como acabou de fazer. O contrário é possível,
como aconteceu com Alice, que passou para o lado de dentro do espelho e foi nos visitar.
Também, até hoje foi a única a realizar essa proeza.
Depois de esfregar os olhos e me certificar de que não estava sonhando, voltei-me para o
espelho, procurando ver nele a minha figura refletida. Se visse, seria capaz de retirá-la também? E quantas vezes isso aconteceria, para formar uma
verdadeira legião de meninos iguais a mim? Mas simplesmente não vi ninguém no espelho,
como aconteceu quando fiquei invisível.
No espelho eu via apenas refletidos os móveis do quarto atrás de mim. E a porta de entrada,
que acabava de se abrir para o Toninho entrar.
Foi ele aparecer e Odnanref de um salto se agachou rapidamente, escondendo-se atrás da
minha cama.
— Que é isso, Fernando? Falando sozinho? — estranhou meu irmão.
Disfarcei como pude, até que ele saísse do quarto. O meu sósia reapareceu, com um suspiro de
alívio:
— Puxa, por pouco ele não me vê! Precisamos tomar cuidado e combinar umas coisas, para
que isso não torne a acontecer.
DESLUMBRADO com a perspectiva de ter alguém igual a mim, como um perfeito irmão gêmeo,
eu não imaginava as dificuldades que iria enfrentar. A falta de minha imagem no espelho, por
exemplo, era uma delas: me criava problemas para pentear os cabelos ou escovar os dentes
sem poder me ver.
Combinamos que, a partir de então, ele me substituiria quando eu quisesse, mas jamais
deveríamos ser vistos juntos. Ninguém poderia desconfiar de nossa existência dupla, pois com
isso se acabaria o encanto, significando o seu imediato regresso, para todo o sempre, ao
interior do espelho.
Em compensação, ele me revelou uma surpresa a mais, como se fosse pouco o milagre de
sermos dois: sempre que eu quisesse, poderia ver, ouvir, pensar e sentir tudo o que ele via,
ouvia, pensava e sentia. Se ele comesse um doce, por exemplo, eu podia sentir o gosto; se
achasse graça em alguma coisa, eu podia rir, mesmo que estivesse a quilômetros de distância.
O importante é que só se dava quando eu quisesse: das coisas ruins ou simplesmente sem
graça eu me dispensaria de tomar conhecimento.
O que significava que ele poderia tomar remédio em meu lugar. E assistir às aulas mais cacetes
(para mim eram quase todas), sem que eu deixasse de aprender o que nelas se ensinasse.
Poderia até mesmo fazer provas para mim, enquanto eu ia empinar papagaio, pegar
passarinho, jogar pião ou bola de gude.
E assim foi, durante algum tempo. Nunca me diverti tanto. Só que eu tinha de tomar muito
cuidado para não trair o meu segredo. Às vezes me distraia e minha mãe surgia no alto da
escada da cozinha:
— Uai, Fernando, como é que você já está aí embaixo no quintal, se ainda agora te vi lá no seu
quarto? Por onde você desceu?
Passava outros apertos, como o da blusa do uniforme de Odnanref, que era ao contrário, o
escudo do lado oposto. Tínhamos de trocar de blusa todo dia que ele ia à aula em meu lugar.
Até o cabelo criou problemas: eu partia do lado esquerdo e ele do lado direito. Tivemos de
acabar ambos partindo ao meio.
Pois um dia eu é que acabei por distração indo à aula com a blusa dele. A professora percebeu o bolso do lado direito, tive de inventar uma história complicada para
explicar aquilo: um colega me havia arrancado o bolso numa briga e a costureira pregou do
lado errado... Não sei se ela acreditou. Mas o pior é que Odnanref era canhoto, e quanto a isto
não podíamos fazer nada. Quando ele ia almoçar com minha família, para que eu pudesse ficar
vadiando na rua, era difícil disfarçar, pois não sabia segurar o garfo com a mão direita. E na
escola era pior ainda, já que só escrevia com a mão esquerda. Tive de inventar que eu estava
treinando para usar ambas as mãos, tinha jeito com as duas, tanto fazia usar uma ou outra. E
as pessoas grandes ficavam admiradas, dizendo que nunca haviam percebido que eu era
ambidestro. Mais uma palavra nova que eu aprendia.
Odnanref me revelava verdadeiras maravilhas. Conhecia coisas do outro mundo. Me contou
que existe vida em outros planetas, em milhões deles, com tudo igual â vida na Terra,
reprodução exata de tudo que aqui acontece, as mesmas pessoas, os mesmos países, os
mesmos problemas. Que no mundo dos espelhos, de onde ele viera, era possível viajar para o
passado, correr os séculos até o princípio dos tempos e a criação do universo. Ou ir para o
futuro, saber o que aconteceria de hoje até o final dos tempos. E mais — ele dizia com a sua
voz igualzinha à minha:
— Todo mundo tem na vida uma oportunidade de ser dois. Nos momentos de coragem, por
exemplo, em que a pessoa faz coisas que se julgava incapaz. Os atos de heroísmo, nos
instantes de perigo, quando a gente é capaz de pular um muro ou subir numa árvore que
normalmente seria impossível de conseguir, quem você pensa que está fazendo tudo isso
senão o outro?
Aquela tinha sido a minha oportunidade, jamais teria igual.
E viveríamos felizes um com o outro, desde que ninguém soubesse, mas um dia botei tudo a
perder.
FOI num sábado — me lembro bem. Tinha chovido muito, e nós ficáramos em casa, brincando
no quarto, distraídos — pois nos bastávamos em nossas brincadeiras, e nos completávamos,
não precisando de mais ninguém para que a vida fosse uma fonte permanente de alegria e
distração. Eu estava sentado no chão, colando umas figurinhas num álbum e Odnanref, de pé,
junto ao armário (a figura dele, é lógico, não se refletia no espelho), tentando consertar para
mim um automovinho de corda. Foi quando minha mãe me chamou para tomar o remédio
(um fortifícante, pois achava que eu andava fraquinho). É claro que pedi ao Odnanref para ir
em meu lugar, e ele foi de bom grado.
Eu esquecera de trancar a porta do quarto e de súbito o Toninho entrou. Quando me viu
sentado ali no chão, arregalou os olhos e quase caiu sentado também:
— Como? Se você passou por mim neste segundo ali no corredor?
— Você está é maluco — tentei disfarçar, o pensamento girando rápido na cabeça, em busca
de uma explicação, antes que fosse tarde demais. Naquele instante Odnanref, já tendo
tomado o remédio que minha mãe lhe havia dado, voltou calmamente para o quarto.
Toninho se virou e viu quando ele surgiu na porta. Ficou olhando para ele, depois para mim,
novamente para ele, com os olhos deste tamanho. De repente soltou um berro e precipitou-se
porta afora, atropelando o meu sósia e atirando-o ao chão. Dei um pulo e ajudei-o a se
levantar. Depois tranquei a porta por dentro, ofegante, a ouvir a gritaria do Toninho lá fora,
nos denunciando a todo mundo.
— E agora? — perguntei, ansioso.
— Não há nada a fazer — e ele me abraçou: — Estou descoberto, tenho de ir embora.
— Às vezes ainda há jeito — disse eu, comovido, retribuindo o abraço: — Não me deixe
sozinho, não vá embora, por favor.
E procurava contê-lo. Mas ele se desembaraçava delicadamente de mim:
— Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde. Até que fomos de sorte, fiquei tanto tempo...
Há pessoas que não conseguem senão alguns segundos. Outras não conseguem nunca...
Adeus, Fernando, meu irmão. Feche os olhos, por favor.
— Adeus, Odnanref — murmurei, quase chorando.
Fechei os olhos, como ele pedira. Quando tornei a abri-los, vi por entre as lágrimas a minha
figura refletida no espelho, como sempre. Ele se fora para nunca mais.
Ouvi que batiam na porta com insistência:
— Fernando, abre aí!
Era meu pai, minha mãe, o Gerson e até a Alzira, convocados pelo Toninho para testemunhar o
fenômeno. Mal destranquei a fechadura, eles irromperam quarto adentro num tropel, como
se fossem salvar o pai da forca:
— Onde? Onde está o Fernando?
— Estou aqui — respondi, admirado: — Não estão me vendo?
— O outro Fernando! O outro Fernando!
— Que outro?
Olhavam ao redor, como se estivessem procurando alguém. Não esqueceram de espiar
debaixo da cama ou dentro do armário. Depois se voltaram para o Toninho:
— Acho que você está ficando maluco — disse o Gerson.
— Nesta casa ultimamente andam acontecendo coisas muito malucas — disse mamãe.
— Sempre aconteceram — disse papai.
E saíram todos. Mais tarde, ao jantar, quando comentaram o episódio, não deixaram de
gracejar com o Toninho, já descrentes do que ele insistia em dizer que era a pura verdade: vira
dois Fernandos, um dentro do quarto e o outro entrando, depois de tomar o remédio.
— Acho que você é que anda precisando de remédio — comentei, mais calmo: — Está
sofrendo da vista.
De volta ao quarto, fui levar uma palavra de tranqüilidade para o meu amigo no espelho:
— Tudo bem — e sorri para ele.
Mas ele se limitou a dizer ao mesmo tempo:
— Tudo bem — e sorriu para mim.
CAPÍTULO VIII
MINHA GLORIA DE CAMPEÃO
NASCI no dia 12 de outubro, aniversário do Gerson, que estava fazendo oito anos. Meu irmão
tinha pedido de presente uma surpresa, e surpresa ele teve: nasci em casa, como acontecia
naquela época, e minha mãe mandou botar o bebê na cama do Gerson, como presente de
aniversário.
Quando ele acordou e deu comigo a seu lado, ficou na maior alegria. Foi um custo para se
convencer de que eu não era um brinquedo dele, que pudesse ficar carregando pela casa de cá
para lá o tempo todo.
Dai o carinho com que ele me tratou a vida toda. Embora o Toninho, que era só dois anos mais
velho, sempre tenha sido também muito meu amigo, e fosse o meu companheiro de quarto, o
Gerson, pelo fato de já ser para mim um homem com seus dezesseis anos, me despertava uma
grande fascinação; eu queria ser como ele quando crescesse.
Diga-se de passagem que, ao completar oito anos, também pedi à minha mãe um bebê. Ela
achou muita graça, botando na minha cama um boneco, o que me deixou com muita raiva ao
acordar, pois além do mais eu não era menina para ganhar um presente daqueles.
Estou contando tudo isto para chegar a um episódio de minha infância que devo ao Gerson, e
relacionado a futebol, que sempre foi a sua grande paixão. Até hoje, tantos anos passados,
com filhos crescidos e cheio de netos, ainda joga futebol de salão e tem a parede do seu
quarto decorada com retratos de jogadores.
Quando garotinho eu ia vê-lo jogar no gol do América, que era o time de nossa devoção —
primeiro nos juvenis, depois no time titular, do qual era reserva, apesar de sua pouca idade.
Até então, o futebol vinha constituindo para mim uma série de sucessivos fracassos. Para
começar, na escola eu sempre ficava por último na escolha dos times que os dois melhores
faziam, alternadamente, depois de tirarem par-ou-ímpar para saber quem começava. No dia
em que um dos que escolhiam me apontou por distração antes do fim, os já escolhidos
protestaram:
— Ah, ele não!
Tinha de me conformar com o fato de ninguém me querer no seu time. Procurava me consolar
com a idéia de que me rejeitavam não por jogar mal, mas por ser dos menores. Não podia nem
apelar para a ignorância, como fazia o Bolão, um gorducho que mal conseguia correr em
campo, mas que ia avisando logo, por ser dono da bola:
— Ou eu jogo, ou ninguém joga.
Não que eu fosse assim tão ruim, dos piores. Conseguia controlar a bola que me passavam
(quando passavam) jogando em geral (quando deixavam) na ponta direita, por ser pequenino
mas veloz. Conseguia também levá-la de vez em quando à linha de fundo, como fazem os
pontas mais famosos. Só que acabava saindo pela linha de fundo com bola e tudo, pois me esquecia de centrar.
Eu era muito distraído, eis o problema. Ficava prestando atenção em coisas que nada tinham
com o jogo: um carro que passava na rua, um passarinho pousado na árvore, um avião no
céu... De repente era aquela gritaria dos outros, me incentivando:
— Vai nela! Vai nela!
Era comigo? Eu caía das nuvens, procurando ir na bola, mas nem mesmo sabia onde ela
estava: quando a descobria, o zagueiro adversário já se havia antecipado, afastando o perigo,
enquanto os companheiros reclamavam, pedindo minha substituição.
O resultado é que eu era um peso morto nas raras peladas que me deixavam disputar, tanto
na escola como no campinho daquele lote vazio perto de casa.
Um dia experimentei jogar de goleiro, e o resultado foi ainda mais desastrado: engoli cinco
gols, sendo três contra, feitos por mim mesmo, na hora da confusão (dois de cabeça e um com
o traseiro).
TAMANHA era a minha frustração por causa do futebol, que resolvi treinar sozinho, para ver se
melhorava o meu rendimento no jogo. Ia para o campinho de pelada quando já não havia
ninguém lá, e ficava horas a me distrair com uma bola que meu pai me dera, a meu pedido.
(Não me ocorreu apelar, como o Bolão, para o fato de agora também ser dono da bola.)
Tentava, sem resultado, matar na cabeça, controlar no peito ou no joelho, sustentar a bola no
ar fazendo embaixada, como via os grandes jogadores fazerem. Conseguia no máximo dois ou
três lances e ela rolava logo para longe de mim, resvalava no meu pé e o chute em gol saía
espirrado, sem direção. Em geral eu voltava para casa coberto de suor do esforço feito e de
desânimo com o resultado obtido.
Entardecia, quando um dia, sentado no tijolo que marcava um dos lados do gol, pensando em
desistir, levantei o rosto, sentindo que alguém me observava de longe. Era o Gerson. Ele se
aproximou:
— Não é nada disso. Está tudo errado. Vou te ensinar como se faz.
Disse que estava ali havia muito tempo, acompanhando o meu esforço. Pegou a bola e
mostrou como eu devia fazer para erguê-la do chão com o pé: uma puxadinha por cima e
depois enfiar de leve o bico da chuteira por debaixo. O chute devia ser com o peito do pé e
não com a ponta, nas bolas altas; nas rasteiras, com o pé meio de lado:
— Assim, quer ver?
E ele chutava com perfeição, a bola ia direitinho ao gol. Depois me mostrou como se dava cabeçada: com a testa e não com o alto da cabeça. Por isso é que eu
chegava sempre em casa com ela doendo. E a testa é que ia na bola, não a bola na testa.
Naquele dia e nos que se seguiram me ensinou uma porção de coisas assim, que eu ia
aprendendo lentamente, para depois tentar praticar sozinho. E olha que ele jogava era no gol.
Não adiantou grande coisa. Na escola eu continuava o último a ser escolhido e me deixavam
entrar no time só para fazer número, quando não havia ninguém mais para completá-lo.
Cheguei a passar pela humilhação de exigirem que eu jogasse o primeiro tempo num e o
segundo tempo noutro, para compensar a desvantagem de me terem como jogador.
Não que este ou aquele já não tivesse percebido em mim algum progresso. Mas haviam
decidido que eu era ruim de bola e não mudariam nunca de opinião. Além do mais, eu
continuava sem conseguir acompanhar o tempo todo o desenrolar do jogo: qualquer coisa me
distraia a atenção.
Houve um dia em que, final de partida, a bola veio rolando até meus pés. Eu estava
praticamente sozinho diante do gol e em posição legal, o goleiro já batido, caído ao chão, era
só chutar. Em vez disso, pensando que não estava valendo, que o juiz já tinha apitado ou
qualquer coisa assim, peguei a bola com a mão, me voltei para os companheiros que, na maior
gritaria, insistiam comigo que chutasse, e perguntei ingenuamente:
— Que foi que aconteceu?
Logo o goleiro adversário se aproximou, e me tomou a bola das mãos, dizendo em tom de
zombaria:
— Com licença, artilheiro.
Perdemos o jogo por causa disso. Naquele dia voltei para casa chorando.
ACABEI desistindo de jogar e me limitando a ir com o Gerson e o Toninho assistir às grandes
partidas. Mas a minha mágoa continuava. Eu me sentia um fracassado na vida, por não dar
certo no futebol.
Pois foi exatamente no dia 12 de outubro, quando completei oito anos, que se deu a minha
reabilitação, de maneira tão fantástica que eu mesmo não acreditaria se me contassem. Como
já disse, foi graças ao Gerson, que também fazia anos naquele dia.
Era o jogo de decisão final do Campeonato Mineiro: Atlético contra América. Torcíamos
apaixonadamente pelo América, não só por ser o time de nossa predileção mas, com mais
razão ainda, porque o próprio Gerson ia jogar de goleiro, em substituição ao famoso Princesa,
que estava contundido. Apesar de seus dezesseis anos, e jogando ainda nos juvenis, era muito
desenvolvido para a idade, podendo perfeitamente passar por homem feito, como os demais do primeiro time. A formação do América, segundo o esquema dois-três-cinco que vigorava na época, era a seguinte:
GERSON
CHICO PRETO NEGRÃO
RAFAEL PIMENTÃO BEZERRA
JAIR JAVERT JORIVÊ JACY JICO LEITE
A linha, como se vê, era toda ela composta de nomes começados com J (inclusive o ponta
esquerda, Chico Leite, que por causa disso passou a ser Jico Leite). Quem não acredita, que
consulte os jornais da época.
O time do Atlético se compunha dos seguintes craques:
KAFUNGA
NARIZ MAURÍCIO
MAURO BRANT CAIEIRA
CHAFIR SAID OIRAM JAIRO CUNHA
Oiram era o grande centro-avante Mário de Castro, cujo pai não admitia que ele fosse jogador
de futebol, e por isso figurava com seu primeiro nome de trás para diante.
Gerson me reservou uma primeira surpresa: tinha me arranjado um uniforme completo do
time do América, para que eu entrasse no campo como mascote.
Só o fato de sair do vestiário em meio aos jogadores de verdade já me enchia de emoção.
Sentia-me ainda mais pequenino no meio daqueles homenzões peitudos e de pernas
cabeludas que invadiam o campo como uma manada de búfalos, sob os delirantes aplausos da
torcida, que lotava completamente o estádio do América. Gerson me conduzia pela mão,
quando nos alinhamos para fazer o cumprimento de praxe à assistência. Depois os jogadores
se espalharam, batendo bola e fazendo exercícios de aquecimento. Fiquei por ali, ciscando
entre um e outro, a viver a minha grande emoção.
Mas o meu maior momento de glória ainda estava para chegar.
O juiz convocou os jogadores, que se dispuseram a dar início à partida, colocando-se cada um
em seu lugar no campo. Gerson foi para o gol, depois de me deixar em companhia do
treinador no banco dos reservas.
Foi dada a saída. Logo se viu que iríamos assistir a uma peleja das mais emocionantes. Os
ataques se sucediam de lado a lado. O América pressionava e Kafunga, num de seus grandes
dias, fazia defesas prodigiosas. Gerson não deixava por menos. Os contra-ataques do Atlético encontravam no meu irmão uma barreira intransponível:
— Gerson não está deixando passar nem pensamento! — diziam os reservas, a meu lado,
entusiasmados.
Os lances violentos também se sucediam. A todo momento um jogador era substituído por
contusão. O primeiro tempo terminou empatado de zero a zero.
Logo ao início do segundo tempo, o juiz apitou contra o América um pênalti que nossa torcida
reclamava, revoltada, jamais ter existido. Cobrada a penalidade máxima, Gerson não teve
como segurar, apesar de conseguir tocar os dedos na bola, numa ponte magistral. Um a zero
contra nós.
Por mais que o América reagisse, não conseguia igualar o marcador. Faltavam quinze minutos
para o término da partida, quando enfim uma bola cruzada de Javert para a área foi dar na
cabeça de Jacy, que emendou de primeira, sem que Kafunga nada pudesse fazer. Um gol de
susto, como se costuma dizer. Estava empatada a peleja.
O tempo passando, as duas equipes buscando ferozmente o desempate. Aos cinco minutos do
término da partida, houve uma interrupção, não entendi bem por quê, e, pelo jeito, a torcida
ainda menos, pois prorrompeu na maior gritaria. Ao reiniciar-se o jogo, a linha americana
esboça um perigoso ataque pela direita. De posse da bola, Jico Leite penetra a defesa
contrária, mas se choca violentamente com Nariz e rola no chão, contundido, botando sangue
pelo nariz.
Pânico nas hostes americanas: todos os reservas já haviam entrado em campo, não sobrara
ninguém para substituições, que fazer? Segundo as regras daquele tempo, time nenhum podia
jogar desfalcado, sob pena de ser eliminado do campeonato.
Disputa interrompida, o jogador machucado é retirado na maça. Gerson vai confabular com o
juiz, gesticula, depois vem correndo até o banco dos reservas onde me encontro, em
companhia do treinador e do massagista. Fala qualquer coisa ao ouvido do treinador, me
apontando, e este se volta para mim, com ar grave:
— Você vai ter de entrar, Fernando. Não tem mais ninguém. Você é a nossa última esperança.
Não vacilei: além do mais, era justamente a ponta direita, minha posição predileta! Pois se o
América precisava de mim para completar o time, contassem comigo, era uma questão de
honra. Apenas mais cinco minutos — mas futebol, como se sabe, é uma caixa de surpresas. Em
cinco minutos tudo pode acontecer.
E aconteceu. Mal tive tempo de fazer o aquecimento. Como se fosse a coisa mais natural do
mundo, entrei em campo. A aclamação da assistência foi ensurdecedora — o que não chegou a me perturbar: tinha de me concentrar na missão que
me cabia. Gerson havia me ensinado muito bem o que devia fazer.
Jorivê deu a saída do meio do campo, cumprindo ordem do juiz: atrasou para Pimentão, que
adiantou para Jacy. Caieira rouba-lhe a bola, passando para Chafir, que avançou
perigosamente, Gerson se preparou para defender, Chico Preto aliviou, pondo para fora num
chutão.
Ao contrário do que fazia nas peladas de meninos, eu procurava acompanhar, lance por lance,
o desenrolar da disputa, em seus instantes finais. Chafir fez a cobrança da lateral, dando de
presente para Negrão, que, sem perda de tempo, acionou Bezerra. Quando eu,
estrategicamente colocado no setor direito do gramado, como me competia, já pensava que
não daria tempo sequer de intervir numa só jogada, eis que Bezerra faz com que a bola venha
rolando até mim.
Depois de dominá-la numa manobra que arrançou aplausos da torcida, e tendo Jacy na
cobertura, driblei Nariz, deixando-o estatelado de surpresa, e tabelei com meu companheiro.
Este passou ao Jorivê, enquanto eu me deslocava para recebê-la de volta. Então disparei num
pique, sob o delírio da assistência, e lá fui eu com minhas perninhas curtas no meio daqueles
cavalões, driblei um, outro, deixei para trás a defesa adversária. E me vi frente a frente com o
goleiro. Kafunga abria os braços gigantescos, achei que queria me pegar e não à bola. Fiz que
chutava, como se fosse encobri-lo, ele pulou. Então passei com bola e tudo por entre as pernas dele e marquei o gol da vitória.
Foi aquela ovação, a torcida delirava. Logo em seguida soou o apito final e meus companheiros
de equipe correram para me abraçar e carregar em triunfo. O que para eles era fácil, dado o
meu tamaninho. E assim demos a volta olímpica, sagrados campeões.
CAPÍTULO VI
NAS GARRAS DO PRIMEIRO AMOR
UM DIA perguntei à Mariana:
— Você quer ser minha namorada?
A sociedade secreta Olho de Gato havia deixado de se reunir, mas Mariana e eu
continuávamos nos encontrando, apenas como amigos. Os outros dois agentes secretos
continuavam também por ali, prontos para entrar em ação, quando convocados: Hindemburgo
com as suas cachorrices, e Pastoff sempre acoelhado no fundo do quintal.
A resposta de Mariana me deixou estatelado de surpresa:
— Você ainda é criança.
— E daí? — gaguejei, despeitado: — Você também não é?
Ela olhou para um lado e para outro, vendo se não havia ninguém por perto, e aproximou a
boca do meu ouvido:
— Eu já tenho namorado.
Minha surpresa foi ainda maior. Tentei disfarçar com um gracejo:
— Não vai me dizer que é o Pastoff. Mariana tinha um carinho especial pelo coelho. Mas ela
continuou séria:
— Se você jura que não conta para ninguém, eu digo quem é.
Jurei com os dedos em cruz.
— Então espera um instante.
Foi até sua casa e em pouco voltava a correr, trazendo um recorte de revista:
— Olha aqui ele.
Era o retrato de um famoso artista de cinema, nem me lembro qual.
— Ora, isso aí não é namorado nenhum — comentei, com desdém, mas no fundo aliviado: —
Eu digo é namorado mesmo. Gente de verdade, como eu.
Ainda me sentia ferido no meu amor-próprio, desprezado em favor de um rival inexistente:
— Esse não passa de um pedaço de papel. Ela não se abalou:
— Pois fique sabendo que é a ele que eu amo — e beijou o retrato com fervor diante de meus
olhos. Depois fez meia-volta e correu para dentro de casa, recorte apertado contra o peito.
MAIS de uma vez eu já tinha ido observar os casais nos bancos da praça, ou passeando entre
os jardins. O que me intrigava era o jeito meio solene, a compostura deles. Por que ficavam
sozinhos? Que é que tanto conversavam? E principalmente, por que às vezes não diziam nada,
calados um junto do outro, como se estivessem aborrecidos ou pensando na morte da
bezerra? Por que não iam fazer alguma coisa, tratar da vida, cada um para o seu lado?
Naquela época não se admitia que os namorados nem mesmo se dessem as mãos — a menos
que já estivessem comprometidos: feito o pedido de casamento e celebrado oficialmente o
noivado, podiam os dois sair então de braço dado pela rua. Podiam até mesmo ficar
conversando baixinho, sentados na varanda ou no sofá da sala, desde que na presença
vigilante de alguém — em geral a mãe da moça a tricotar na cadeira de balanço.
Eu já sabia tudo isto e sabia também que namorar, embora meio proibido pelos pais, ou por
isso mesmo, era uma coisa boa. Mas só para as meninas. Elas é que não tinham outro assunto,
principalmente as mais velhas, quando se reuniam, aos risinhos e cochichos. Para nós, homens
de sete, oito, nove anos, namorar era uma bobagem, coisa para mulher. O que vinha a ser um
contra-senso: como as meninas poderiam se dedicar ao namoro, se os meninos não pensavam
em fazer o mesmo?
Foi o que me levou naquele dia a quebrar a regra que nos havíamos imposto de não dar
confiança às mulheres, e perguntar à Mariana se queria me namorar. Jamais esperava uma
negativa, e sua reação me deixou humilhado: quem ela pensava que era? Alguma princesa?
Mas num ponto não deixava de ter razão — foi o que logo concluí: namoro era coisa séria, de
gente grande, e para toda a vida — namoro, noivado, casamento. Não era brincadeira de
menino. Por isso ela tinha escolhido um homem para namorar e não queria saber de uma
criança como eu. Pouco importava que ela também fosse criança e ele um artista de cinema,
que nunca seria visto em carne e osso.
Decidi fazer o mesmo. Passei a reparar nas artistas, a fim de escolher uma para mim, a que me
parecesse mais bonita. Em meio aos retratos de meus ídolos, que eram em geral jogadores de
futebol e lutadores de boxe, passei a colecionar também o de atrizes de cinema, em figurinhas
que acompanhavam as balas Fruna. Mas amava todas elas, indistintamente, não me decidia
por nenhuma em particular. Ao contrário de Mariana, não me contentava em ter como
namorada alguém que só existia no papel ou na tela.
Foi quando surgiu em Belo Horizonte aquela que passou a encarnar na vida real a figura do
meu primeiro amor.
CÍNTIA era minha prima — filha do irmão de mamãe, que morava no Rio. Viera passar uns dias
conosco. Era a primeira vez que eu tomava conhecimento da sua existência. Devia andar pelos
dezessete, dezoito anos, o que queria dizer que era para mim uma mulher feita — e a mais
bela que eu jamais vira de perto. Usava blusa sem manga e com decote, saia-calça, tinha os
cabelos louros, os olhos verdes e ainda por cima fumava.
Mamãe se escandalizou ao vê-la tirar calmamente da bolsa um cigarro na vista de todos e
acender, para depois cruzar as pernas e soltar devagarinho a fumaça pelas narinas:
— Você fumando, menina? Seu pai sabe disso?
— Ora, titia, que é que tem de mais?
— Uma moça direita não fuma.
— Hoje em dia toda mulher fuma. Não é mais pecado.
E ela desviou da testa uma madeixa de cabelos, movimentando a cabeça para o lado num
gesto que me pareceu simplesmente lindo.
A sua presença fez com que nossa casa ganhasse uma aura de encanto, como um lugar
privilegiado, de um fascínio que parecia impregnar o próprio ar que eu respirava. Quando ela
surgia na sala, tudo se iluminava. Eu voltava correndo da escola para não perder um minuto da
sua presença, e não arredava pé de casa, nem mesmo para ir ao quintal, meu reino esquecido.
Mamãe estranhava aquela mudança nos meus hábitos:
— Não sei o que deu nesse menino.
Nem eu mesmo sabia que estava experimentando pela primeira vez a sensação inebriante de
uma paixão.
Como se fosse pouco, Cintia tocava piano. Eu ficava a seu lado, embevecido, a ver as mãos
longas e brancas deslizando pelas teclas do velho piano na sala de visitas. Em casa ninguém
tocava, a não ser eu mesmo, batucando o Bife com dois dedos, escondido de meu pai: ele
costumava dizer, certamente para silenciar a musiquinha insuportável, que ela atraía o
demônio. Cintia sabia uma porção de melodias americanas, chamadas de fox-trot. Veio daí,
creio, o meu gosto pelo jazz:
— Toca de novo aquela primeira, Cintia.
Ela tocava esta e aquela, a meu pedido. Depois atirava para o lado, naquele gesto seu, a
cortina de cabelos que lhe caía no rosto. Um dia, ao dar comigo a contemplá-la, extasiado,
inclinou-se rindo e me deu um beijo no rosto.
Meu coração disparou, e eu com ele: saí correndo da sala, fui me refugiar no fundo do quintal,
pela primeira vez naqueles dias. E naquela noite não consegui dormir. Era ela que eu via diante
de mim, no escuro do quarto, tocando piano, os cabelos louros, os olhos claros, a cena do
beijo. Toninho, ao perceber que eu continuava acordado, chegou a perguntar se eu estava
sentindo alguma coisa. Não, eu não sentia nada — a não ser o desejo de que a noite passasse
depressa e chegasse logo a manhã para que eu pudesse rever a minha amada.
Mas porque a partir daquele instante tomei consciência de que Cíntia era o meu primeiro amor.
MAS o que é bom dura pouco. Só medi a verdadeira extensão do sentimento que me possuía,
quando surgiu um tormento para submetê-lo à prova, na forma de um rival:
— Você vai sair com ele, Cíntia? — eu perguntava, como quem não quer nada, ao vê-la se
penteando no quarto, enquanto o Peixoto esperava lá fora, na varanda.
— Vamos ao cinema — ela respondia, diante do espelho, juntando os lábios, como num beijo,
para passar o batom.
O Peixoto era um advogado recém-formado, de anel de grau no dedo, que tivera um negócio
qualquer com meu pai, e por causa disso freqüentava a nossa casa. Um dia deu com os olhos
na minha prima e a partir de então começou a aparecer com uma odiosa freqüência. Em pouco
os dois passaram a sair juntos. Não se podia dizer que estavam de namoro, embora já tivessem
até ido passear na praça, como os demais namorados — o que não escapou à minha vigilância,
pois os havia seguido de longe. Mas para mim eram muito mais do que isso: ele era um
indesejável, um intruso, um intrometido em nossa casa, e ela uma traidora, por lhe dar
tamanha confiança.
— Rapaz distinto, esse Peixoto — dizia minha mãe, no fundo fazendo gosto na relação dos
dois: — Leva a Cíntia para passear, faz companhia a ela, e é respeitador, a gente fica mais
sossegada.
Papai já não era assim tão seguro da distinção do rapaz:
— Não sei não... No fundo me parece meio finório, o que não é nada mau para um advogado.
Mas não vá esse pilantra me aprontar alguma com a menina. Com que cara eu ficaria diante do
seu irmão? Afinal, ele nos confiou a filha...
Era o que meus pais conversavam, sentados no sofá da sala, depois do jantar, julgando-se a
sós, mas ao alcance de meus ouvidos — eu por ali a me fingir de distraído com algum
brinquedo, na verdade atento a tudo que se relacionasse à minha prima. E ela com o outro no
cinema, no clube, no chá-dançante... Quase não parava mais em casa, a ingrata, mal tinha
tempo para mim. Eu odiava o Peixoto com todas as forças, ele acabou percebendo:
— O pirralho não vai muito comigo — disse um dia.
Fiquei indignado: me chamar de pirralho, e ainda por cima na vista dela! Atingido em meus
brios, resolvi reagir. Cheguei a pensar em acionar a sociedade Olho de Gato, mas, pensando
melhor, decidi me vingar sozinho: senti por instinto que não devia envolver a agente Anairam
em meus problemas sentimentais. Aquilo era assunto para ser resolvido de homem para
homem.
Concebi um plano diabólico para afastar da Cíntia o meu insuportável concorrente. Comecei
por intrigá-lo com papai, farejando nele um bom cúmplice, embora inconsciente:
— O Peixoto esqueceu o isqueiro dele no quarto da Cintia.
Ele havia realmente esquecido o isqueiro, mas com ela, e não no quarto. Só que para um
coração em pânico valia tudo, inclusive uma mentirinha. Papai ficou aborrecido:
— O salafrário já está entrando no quarto da menina?
E não perdeu tempo em comentar com mamãe:
— É preciso a gente abrir o olho com esse moço.
Alguns dias depois voltei à carga, desta vez com a própria Cíntia:
— Ontem eu vi o Peixoto lá na Avenida de braço dado com uma moça.
Ela não chegou a se impressionar — talvez porque não soubesse o compromisso que
representava o braço dado, coisa que certamente não prevalecia mais no Rio. Mas na verdade
eu havia visto mesmo o meu rival de braço com uma mulher. Só que não era uma moça, podia
ser até a mãe dele: uma mulher mais velha, toda elegante e enfeitada.
O Peixoto, ele próprio, era metido a elegante, sempre na última moda, calça de flanela creme
e paletó azul-marinho, sapato de duas cores e suspensório de couro trançado, como se usava
então.
Uma noite apareceu em nossa casa com a novidade das novidades: um automóvel, novinho
em folha.
— Quero estreá-lo com você.
Viera buscar minha prima para dar uma volta, e nem se dignou convidar meus pais, que dirá a
mim, para ir com eles:
— Não cabe todo mundo — se escusou, empertigado: — É um carro esporte.
O carro era um daqueles chamados baratinhas, que se podia arriar a capota e tinha uma
tampa atrás com dois lugares (caberia mais gente, portanto). Ficaríamos sabendo depois que
nem mesmo era dele, estava apenas emprestado, em experiência, como se usava então.
Naquele tempo não se admitia também que uma moça de família andasse sozinha no
automóvel de alguém; corria logo o risco de ficar falada. Não sei por que meus pais não
invocaram esse princípio moral, proibindo que ela fosse.
Ali estava a minha oportunidade — decidi rapidamente: criar uma situação que deixasse o
Peixoto para sempre desmoralizado diante da Cíntia. Que fazer? Jogar pó-de-mico nele? Já
tinha pensado nisso — mas podia atingi-la também. Esvaziar o pneu? Botar água no tanque de
gasolina? Tudo o que me ocorreu era pouco, não chegaria a comprometer o rival aos olhos da
minha amada.
Foi quando dei comigo distraidamente alisando a cabeça de Hindemburgo, que se aproximara,
orelhas em pé, para saber de que se tratava.
— Quem sabe se eu atiçar o Hindemburgo em cima dele...
Imaginei o Peixoto fugindo espavorido, o cachorrão nos seus calcanhares, mordendo-lhe a
perna, rasgando-lhe a calça...
— Ai não, Hindemburgo.
Ao vê-lo agachar-se, pernas traseiras ligeiramente abertas, ocorreu-me a idéia luminosa:
— Aí não, Hindemburgo! — repeti, inspirado: — No carro do Peixoto! Depressa, no banco do
carro! No lugar do motorista! Quando ele se sentar...
Hindemburgo compreendeu logo e partiu como um foguete para cumprir a sua missão.
Quando o Peixoto se sentou, antes de abrir a porta para que a Cíntia entrasse também no
carro, estava consumado o desastre. Não houve passeio, não houve nada: Peixoto, chafurdado
no assento, partiu em disparada, numa onda de mau cheiro, sem nem se despedir, e Cíntia
ficou livre dele — eu esperava que para todo o sempre.
A pá de cal seria lançada sobre ele alguns dias depois, quando papai chegasse da rua com uma
novidade:
— Me disseram que o Peixoto vive com uma amante mais velha do que ele.
Na hora, porém, para minha completa surpresa, a reação da Cíntia se voltou contra mim:
— Foi você! Tenho certeza de que isso foi coisa sua, seu moleque!
E se dirigiu aos meus pais, indignada, me apontando:
— Foi ele sim! Ele não gosta do Peixoto, eu sei disso!
Eu não podia mais de emoção, petrificado diante de palavras tão duras. Eu, o seu namorado
inconfesso, chamado de moleque! Meus pais reagiram cada um â sua maneira: mamãe
fazendo um ar de perplexidade que escondia a indecisão entre acreditar ou não dar ouvidos,
papai se pondo a rir:
— Se foi coisa do Fernando, foi um malfeito bem feito.
E ainda teve o bom humor de acrescentar, ele que também não gostava do Peixoto:
— Acho que foi coisa é do cachorro... Cíntia tinha ido para o seu quarto, ainda revoltada com o
que havia acontecido. O desastre, afinal, se voltara contra mim — o mundo parecia ter
desabado sobre a minha cabeça.
Naquela noite fui para a cama mais cedo, pretextando um mal-estar qualquer. Mas não
consegui dormir. Sem deixar que o Toninho percebesse, passei grande parte da noite
chorando.
NA MANHA seguinte encontrei debaixo de minha porta um envelope fechado. Abri-o
ansiosamente com o meu canivetinho, já adivinhando de quem seria. Retirei um pequeno
bilhete:
Saí do quarto precipitadamente, mas não encontrei a Cíntia na sala, nem em seu quarto, nem
em lugar nenhum. Dei com meu pai na copa tomando o seu café:
— Cíntia foi embora? — perguntei, aflito.
— Ela saiu — ele informou tranqüilamente, e acrescentou logo, rindo: — Mas não com o
Peixoto. Saiu com sua mãe, foram fazer compras na cidade.
Cíntia estava de partida na manhã seguinte. Não tive, desde então, oportunidade de estar com
ela a sós um momento sequer, para de alguma maneira responder ao seu bilhete. Quando fui
para a escola, ela ainda não tinha chegado, e ao voltar, ela estava em companhia de algumas
amigas que havia feito em Belo Horizonte, e que ficaram para jantar. Só na manhã seguinte
pude lhe dirigir uma palavra furtiva, já na hora de sua partida:
— Eu também, Cíntia — disse-lhe baixinho.
— Você também o quê? — e ela se curvou para me abraçar, se despedindo.
Deu-me um beijo em cada face, e eu me aproveitei para sussurrar ao seu ouvido:
— Eu também te amo.
Ela ficou parada um segundo, surpreendida, e depois se abriu num sorriso que eu guardo até
hoje entre as lembranças mais lindas da minha vida.
Depois que ela se foi, tranquei-me no quarto e busquei seu bilhete para relê-lo ainda uma vez,
por entre as lágrimas que me escorriam dos olhos. Ao enfiar os dedos no envelope, puxei com
o bilhete um outro pedaço de papel, onde, surpreso, dei com as seguintes palavras:
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Era apenas um pedaço do bilhete, que eu havia cortado em dois ao abrir o envelope. Juntei os
pedaços e pude enfim ler o bilhete completo:
NAQUELA mesma tarde a Mariana, que andava sumida, deu o ar de sua graça:
— Então, sua amiguinha já foi embora? — perguntou com voz irônica.
Respirei fundo, espantando de mim o resto da minha mágoa:
— Minha amiguinha é você, Mariana.
O Menino no Espelho - Fernando Sabino
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CAPÍTULO X
A LIBERTAÇÃO DOS PASSARINHOS
D
A JANELA do meu quarto, vi na mangueira uma linda manga sapatinho completamente
amarela de tão madura. Uma rolinha, pousada no galho, ameaçava começar a comê-la.
Chamei a atenção da Mariana, ali a meu lado:
— Olhe só uma coisa.
Eu tinha resolvido dar aquela manga de presente para ela. Tirei de um dos bolsos da calça o
meu bodoque, do outro algumas pedrinhas, escolhi a mais jeitosa, armei o bodoque, fiz
pontaria e atirei.
Desde que era escoteiro, tinha aprendido que só devia usar o bodoque para praticar o bem,
como apanhar manga. Nunca para quebrar vidraça ou lâmpada de rua, e muito menos matar
passarinho. Costumava armar uma pequena arapuca no fundo do quintal para apanhá-los e
depois tornar a soltar, mesmo que fosse um precioso canário ou um lindo sabiá: meu pai não
admitia criar passarinho em gaiola, achava uma perversidade. E tinha me transmitido esse seu
sentimento:
— Imagine se fizessem o mesmo com você: te criassem dentro de uma gaiola.
Quando o Toninho apareceu lá em casa com um casalzinho de periquitos verdes, que ele tinha
trocado com um menino pelos seus patins, papai mandou imediatamente que soltasse os
bichinhos:
— Depois te dou outro par de patins. De bichos aqui em casa, basta um papagaio, um cachorro
e um coelho. Não se falando nas galinhas ali do seu Fernando.
Fazia alusão à minha galinha Fernanda, que por essa ocasião já tinha morrido de velha. E
arrematou:
— Isso de passarinho em gaiola é coisa desse soldado aí do lado.
O soldado a que ele se referia com aquele ar de desprezo era o major Alberico Pape Faria, que
morava na casa à direita da nossa. Mal sabia eu que em breve esse major estaria em guerra
declarada conosco. Ou nós com ele: não se sabe quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha —
no caso, o passarinho.
TUDO parece ter começado no dia em que a Mariana e eu estávamos no nosso posto de
observação, nos últimos galhos da goiabeira junto ao muro que dava para a rua, entregues a
uma de nossas distrações prediletas: jogar água nos que passavam lá fora, na calçada.
Usávamos uma velha seringa de borracha, encontrada no quarto de despejo, e cuja serventia
anterior não sabíamos qual tivesse sido. Chegamos ao requinte de prender numa forquilha a
nosso lado um balde cheio d'água, para remuniciar a nossa arma, e não precisar de ficar
descendo e subindo o tempo todo.
— Vem gente — anunciava Mariana, de sentinela, recolhendo depressa a cabecinha, como o
cuco de um relógio suíço, e dando lugar a meu braço com a seringa. Era um esguicho só.
Jamais deixava de passar um grande susto na pessoa lá na rua, mesmo que fosse atingida
apenas por alguns respingos.
Não era fácil acertar de cheio. Quando isso acontecia, o coitado saía completamente
encharcado. Então despencávamos da goiabeira e íamos em disparada para dentro de casa.
Ficávamos na sala, como se já estivéssemos ali longo tempo, empenhados numa distração
inocente qualquer, ao alcance da vista dos mais velhos, para enfrentar uma possível
reclamação da vítima.
A primeira que veio reclamar foi justamente o major Pape Faria.
O homem havia tomado um verdadeiro banho. Mal pudemos esconder o riso quando o vimos
entrar, molhado como um pinto por um esguicho que lhe havia encharcado a farda pelas
costas, da cabeça ao calcanhar. Veio reclamar do meu pai, água ainda escorrendo e pingando
no chão:
— Olha só o que o diabo do seu filho me fez, Meu pai o olhou, espantado:
— Onde é que o senhor se molhou assim?
— Onde é que eu me molhei? — respondeu o major, furioso: — Pergunte ali ao seu filho! Foi
esse diabo que me molhou.
— Meu filho não é diabo, e está aqui na sala um tempão, brincando com a amiguinha dele.
— Eu conheço muito bem tanto ele como essa amiguinha dele. Foram os dois juntos. Mas isso
não vai ficar assim.
— Nem um nem outro arredou pé daqui um instante sequer. Como é que podem ter jogado
água no senhor?
— Podem porque eles são capazes disso e de muito mais. Sei lá se o que me jogaram foi só
água? Pode perfeitamente ter sido coisa muito pior.
O major passava a mão nas costas molhadas e levava ao nariz:
— Ainda bem que não está cheirando. Mas boa coisa é que esse menino não é.
Meu pai se encrespou:
— Pode até não ser, mas não admito que o senhor venha à minha casa
para falar mal de meu filho.
E se adiantou, abrindo a porta para que o major se pusesse para fora da nossa casa. Ao se
despedir, além de rebaixá-lo de posto, ainda errou o nome dele:
— Passe bem, capitão Patifaria.
Mariana e eu não resistimos e soltamos uma gargalhada lá da sala. O major ficou furibundo:
— Patifaria não: PAPE FARIA! Patifaria foi o que aqueles dois me fizeram. Fique sabendo que
meu nome é Alberico Pape Faria, major do exército e não capitão. E fique sabendo também
que serei tenente-coronel antes do fim do ano. Isso não vai ficar assim.
Com esta última ameaça, deu meia-volta e, depois de fazer para mim um sinal com a mão de
quem diz "você me paga", saiu marchando com passo duro.
Estava declarada a guerra.
— Capitão Patifaria! — gritávamos, toda tarde, ao passar em frente à casa dele. Tocávamos a
sineta, sacudindo o portão, e saíamos correndo. Às vezes papai ouvia, mas, em vez de zangar,
achava graça. Mamãe ficava preocupada:
— É melhor a gente chamar a atenção desses meninos. O major pode ser antipático, mas eu
sei muito bem de que meu filho é capaz, se começar a implicar com ele. Isso ainda acaba mal.
O homem é importante, pode nos prejudicar.
— Importante lá para os soldados dele — retrucava meu pai tranqüilamente: — Sou paisano e
ele que cuide de sua importância, que de meu filho cuido eu.
Até que um dia, quando gritávamos "capitão Patifaria!" debaixo da janela dele, sem que o
major aparecesse como sempre, e antes que sacudíssemos o portão tocando a sineta, senti de
súbito uma mão pesada me segurar pelo ombro. Mariana o viu primeiro e fugiu correndo, a
gritar:
— Cuidado, Fernando! Corre também!
Era tarde. Voltei-me e dei de cara com o major, mãos estendidas para me agarrar pelo
pescoço, talvez até me estrangular. Dei uma ginga de corpo como costumava fazer no futebol.
Ele avançou por um lado, eu escapuli por outro. Ele ainda me acertou um violento cascudo no
alto da cabeça, antes que eu conseguisse fugir com quantas pernas tinha.
— Isso não vai ficar assim! — repeti de longe a sua ameaça, quando me vi a salvo.
E REALMENTE não ficou. Juntei-me à Mariana para tramarmos uma vingança à altura do
cascudo que ele me tinha dado e que me deixou com dor de cabeça o dia inteiro.
Naquela mesma noite, antes de nos recolhermos, esticamos um arame do poste de luz na
calçada ao portão da casa dele, para que ele tropeçasse quando fosse sair. No dia seguinte
ficamos sabendo que isso tinha mesmo acontecido, pois o vimos passar com o nariz
esborrachado como uma goiaba bichada, e na testa uma cruz de esparadrapo que a aba do
quepe não chegava a ocultar.
Alguns dias depois, foi a vez do major. Eu estava com alguns amigos jogando futebol na rua,
quando a bola caiu no jardim da casa dele. Era domingo, dia de nenhum movimento, e não nos
dávamos ao trabalho de ir jogar no campinho de peladas do lote vazio, que era inclinado e não
plano como o asfalto em frente à nossa casa.
— E agora? — nos entreolhamos, sem saber o que fazer, com medo do major.
Resolvemos escalar o Turcão, que era o mais forte de todos, para ir buscar a bola: ele era o
que corria menos risco de levar um cascudo do homem.
— Pede licença com delicadeza — avisamos ainda.
Em pouco o Turcão voltava, com lágrimas nos olhos:
— Olha só o que ele fez com a sua bola, Fernando.
E mostrou-nos a bola reduzida a tiras de couro, toda cortada a navalha.
— Por que você não meteu a mão na cara dele? — protestamos, indignados.
— Eu? — e o Turcão fez um ar de quem, mesmo sendo grandalhão, não
era nada bobo: — O homem estava com um revolvão deste tamanho na cintura!
Guerra é guerra — agora era a nossa vez de agir.
Com a intenção de articularmos o próximo lance, convoquei a Mariana para uma reunião em
meu quarto. Depois de pensarmos e repensarmos vários planos, foi que eu me debrucei na
janela e vi a tal manga madura.
Esquecido por um instante do major Pape Faria e suas patifarias, resolvi oferecê-la à Mariana,
que era louca por manga, derrubando-a com uma certeira bodocada. O que para mim era fácil:
bastava acertar um pouco acima, no cabo que a prendia ao galho, para que a pedra não a
machucasse, atingindo a polpa, como aquela rolinha estava quase fazendo...
A pedra partiu zunindo, realmente certeira, mas a rolinha é que tombou, atingida na cabeça.
MARIANA e eu nos olhamos, estarrecidos: matar um passarinho! Para nós, como disse, aquilo
era um pecado imperdoável. A coisa mais bonita que Deus havia feito! Quem magoasse uma
daquelas criaturinhas era como se fizesse mal a uma criança, não merecia salvação.
Então nos precipitamos até o quintal, para ver se a rolinha não estaria apenas machucada,
talvez houvesse tempo de salvá-la.
Não havia. Estava morta, caída ao chão, asas semi-abertas, a cabeça tombada para baixo,
ensangüentada. Segurei nas mãos o seu corpinho ainda quente, como se pudesse preservar
nele um resto de vida.
— E agora? — perguntou Mariana, impressionada.
— Não adianta: está morta mesmo.
Foi então que me veio, não sei por que, uma idéia maldita, diabólica, como uma tentação
soprada do próprio inferno:
— Agora só serve para comer.
Não sei por que disse aquilo, e com tanta naturalidade. Não me espantei nem um pouco
quando Mariana perguntou, com mais naturalidade ainda:
— Você sabe preparar?
— Sei. É só depenar e limpar, como a Alzira faz com as galinhas. Depois a gente acende uma
fogueirinha e assa no espeto.
E comecei a arrancar as penas da rolinha morta, uma por uma. Estava difícil, pois não me
lembrei que era preciso antes mergulhar em água bem quente. Acabei deixando esta parte
para depois:
— Vamos primeiro limpar por dentro.
No fundo, eu talvez estivesse querendo ver como era por dentro um passarinho. E Mariana, a
meu lado, olhos bem atentos, parecia partilhar da minha curiosidade. Abri a barriga da rolinha
com o canivetinho e comecei a retirar com o dedo tudo que havia lá dentro, como se fosse o recheio de uma boneca. Só que era uma matéria mole, viscosa, molhada de sangue, que começou a me causar o maior nojo, senti vontade de vomitar. Até que no meio de tudo aquilo, surgiu um pedaço de carne
compacto, do tamanho da ponta do meu dedo, era o coração dela. Mostrei para Mariana, não
podendo mais de emoção: as lágrimas me escorreram pelo rosto. Mariana também chorava,
baixinho, de pena da rolinha, ou por me ver chorando, não sei bem — o certo é que nós dois
nos entregávamos a uma crise de choro incontrolável.
— E agora? — Mariana balbuciou, entre soluços.
— Vamos enterrar — decidi, enxugando o rosto e procurando conter o choro.
Ela foi correndo à sua casa, enquanto eu abria uma pequenina cova na terra úmida, junto ao
tronco da mangueira. Em pouco estava de volta, trazendo uma caixa de sabonete Araxá vazia e
ainda perfumada. Recolhemos dentro dela, em respeitoso silêncio, os restos mortais da
rolinha, fechamos a tampa com cuidado e depusemos dentro da cova, com gestos lentos que
já obedeciam a um grave ritual. Tampamos com terra, e fizemos um montinho de pedras em
forma de túmulo, no qual espetamos uma cruz de dois paus de fósforo amarrados com linha.
Depois fizemos o nome-do-padre e rezamos um padre-nosso e uma ave-maria pela alma da
rolinha.
NAQUELA noite não pude dormir (no dia seguinte saberia que o mesmo aconteceu com
Mariana). Sentia que fizera algo de terrível, sujo e pecaminoso. Não por ter matado um
passarinho. Aquilo acontecera sem eu querer, Deus era testemunha. A minha culpa era de
haver profanado o seu cadáver, com a intenção de comê-lo. Como se eu fosse um selvagem,
um animal!
Foi então que me ocorreu a idéia que concederia o perdão por aquela falta aparentemente
imperdoável: praticar uma boa ação para compensá-la.
Quando contei a idéia à Mariana, demos saltos de alegria ao descobrir que a boa ação, por nós
logo tramada, seria ao mesmo tempo o esperado troco ao major Pape Faria, pela patifaria que
havia cometido cortando a minha bola.
Ao dizer que passarinho preso era "como esse soldado aí do lado", meu pai estava se referindo
aos passarinhos que o vizinho criava, não só em gaiolas na varanda da casa, como no imenso
viveiro ao fundo de seu quintal.
Esse viveiro sempre foi um de meus deslumbramentos: pintassilgos, tico-ticos, canários,
sanhaços, periquitos, bicos-de-lacre e mil outros passarinhos se confundiam ali dentro em
constante agitação. Eu subia no muro e ficava horas a olhar aquela passarinhada toda
revoando lá dentro, em busca de uma saída, alguns empoleirados pelos cantos, tristes porque
não podiam mesmo escapar. E me dava vontade de soltá-los.
Era o que iria fazer agora.
A sociedade secreta Olho de Gato foi reativada, para o cumprimento daquela perigosa
operação. Estenderíamos agora a natureza de suas atividades ao campo das missões
subversivas. Deixamos, entretanto, de convocar os agentes Hindemburgo e Pastoff, pois, em
se tratando de passarinhos, não sabíamos se atuariam conosco para soltá-los ou para comê-
los.
A operação ficou marcada para aquela noite. Como precaução, armei-me do bodoque e do
revólver de espoleta.
Sair de casa depois que todos houvessem dormido não nos foi difícil: já tínhamos feito aquilo
mais de uma vez.
Nos encontramos no quintal e, sem uma palavra, pulamos o muro do vizinho. O que também
nos foi fácil: subíamos e andávamos pelos muros como gatos — e por sinal que encontramos
mais de um por ali naquela noite. Parece que farejavam a novidade, e queriam ver se sobrava
alguma coisa para eles, os assassinos.
Atravessamos como duas sombras o jardim do vizinho, passando por cima dos canteiros com
cuidado para não fazer barulho. Subimos primeiro â varanda e abrimos uma a uma as gaiolas
ali dependuradas. Alguns passarinhos acordavam espantados e fugiam logo. Outros custavam
a entender o que se passava, tinham de ser retirados com a mão e atirados no ar para sair
voando.
Depois retrocedemos até o quintal e fomos libertar os do viveiro. O que não foi tão fácil: a
porta era presa por um cadeadinho que tive de arrebentar, com o auxílio de uma pedra.
— Cuidado, Fernando — Mariana me sussurrava ao ouvido, assustada: — Você está fazendo
muito barulho...
Aberta finalmente a porta, para que a passarinhada saísse logo, tive de entrar eu próprio no
viveiro e espantá-la com os braços em direção à saída. Numa revoada em torno da minha
cabeça, batendo as asas e entre cantos e chilreios, eles iam escapando.
Foi quando ouvi a voz ansiosa da Mariana lá fora, montando guarda:
— Perigo à vista! Esconde depressa!
Vi que uma luz se acendera no andar superior da casa. Uma cabeça apareceu. Logo surgiu o
cano de uma carabina, ouviu-se um estampido, uma fumacinha, e alguma coisa passou
assobiando pelo meu ouvido. Atirei-me ao chão, puxando imediatamente o meu revólver de
espoleta e atirando também, uma, duas vezes. O cano da carabina e a cabeça do major
imediatamente sumiram, a luz se apagou.
— Psiu, fique quieta — soprei para Mariana que se deitara no chão, a meu lado, junto a porta
do viveiro. Eu sabia que agora ele estava de volta a janela, no escuro para nos surpreender fugindo, pronto a atirar de novo.
Tínhamos de escapar dali de qualquer maneira. Lembrei-me do bodoque, que havia trazido
também. Assim mesmo deitado, armei-o com uma pedra das maiores, fiz pontaria na sineta do
portão, além do jardim, iluminado pela luz da rua, e atirei. A pedra partiu zunindo e acertou
em cheio no alvo: a sineta começou a tocar, como se alguém sacudisse o portão.
Consegui enganar o inimigo: logo o vulto do major surgia na varanda, esgueirando-se junto à
parede, curvado para a frente, carabina engatilhada, e descendo a escada furtivamente a
caminho do portão.
— Agora — ordenei baixinho para Mariana.
Partimos em disparada e pulamos o muro, voltando para o quintal de minha casa. Respiramos,
aliviados, e nos despedimos, indo cada um para sua casa antes que começasse a confusão.
Que não demorou muito. O major pôs-se a gritar por socorro, dizendo que estava sendo
assaltado. Um guarda-noturno da Praça da Liberdade ouviu a gritaria, chamou seus colegas,
avisou a policia inteira. Vieram até a Polícia Militar e a do Exército, pois o assaltado era um
oficial. Em poucos minutos a nossa rua virava uma praça de guerra. O major contou que os
assaltantes, surpreendidos por ele no quintal, haviam reagido com um tremendo tiroteio, por
pouco ele não morreu. Como eram muitos, conseguiram fugir, levando consigo o produto do
assalto, isto é, todos os exemplares de sua preciosa criação de passarinhos.
— Vale uma verdadeira fortuna! — afirmava, enfurecido.
TUDO isso, é lógico, ficamos sabendo no dia seguinte, ao escutar, com ar inocente, os
comentários dos mais velhos. Para que não desconfiassem de nós, achamos prudente nos
afastarmos dali. E fomos nos refugiar no porão. Quando nos viu passar, Godofredo pôs-se a
papagaiar, entusiasmado:
— Bravos, Fernando! Bravos, Mariana!
O papagaio vibrava com a nossa façanha. Como é que ele soubera?
— Esse camarada ainda vai acabar nos entregando — falei, preocupado.
E sugeri a Mariana que passássemos alguns dias sem nos vermos. Mas antes, ao entardecer
daquele mesmo dia, fomos de mãos dadas fazer uma visita ao túmulo de nossa desventurada
rolinha, junto à mangueira do quintal. Como homenagem à sua memória, fizemos a ela a
oferenda do nosso feito, libertando seus irmãozinhos.
E estávamos ali, banhados pela luz cor-de-rosa do belíssimo pôr-do-sol de Belo Horizonte,
quando uma coisa maravilhosa aconteceu. Como se brotassem do céu, bandos e bandos de
passarinhos de vários tamanhos e mil cores diferentes, vindos de todos os lados, se agrupavam
no ar, em alegre revoada, até formar um verdadeiro enxame de asas em formação cerrada. E
vieram todos para o nosso lado, voando em círculos cada vez menores e mais baixos, em meio
a uma sinfonia de cantos, chilreios e trinados, centralizando-se em cima de nossas cabeças.
Rodopiavam no ar como uma guirlanda de pequeninos seres alados, girândola vinda do céu
para nos abençoar com a sua gratidão. Rodaram várias vezes e depois o círculo se desfez, e
seguiram todos em linha reta, afastando-se como uma nuvem multicor até desaparecer em
direção ao infinito.
EPÍLOGO
O HOMEM E O MENINO
PARO de escrever, levanto os olhos do papel para o relógio de parede: cinco horas. As sonoras
pancadas começam a soar uma a uma, como antigamente em nossa casa.
É um relógio bem antigo. Foi do meu avô, depois do meu pai, hoje é meu e um dia será do meu
filho. Seu tique-taque imperturbável me acompanha todas as horas de vigília o dia inteiro e
noite adentro, segundo a segundo, do tempo vivido por mim.
Já contei várias proezas, aventuras, peripécias, tropelias (e algumas lorotas) do tempo em que
eu era menino. Nada se compara ao mistério que eu trouxe da infância e que até hoje me
intriga: quem era aquele desconhecido que um dia, depois da chuva, foi conversar comigo no
fundo do quintal?
Na hora pensei que fosse algum amigo da família, ou até parente: um velho primo ou tio que
eu não conhecesse. Cheguei, mesmo, a achar que ele se parecia um pouquinho com meu pai
— mas foi só impressão: quando perguntei quem ele era, papai me disse que não tinha a
menor idéia, pois nem chegou a vê-lo. Minha mãe também não soube dizer, muito menos o
Gerson ou o Toninho. A Alzira se limitou a dizer que me tinha visto conversando sozinho, como
eu fazia sempre.
Só restava perguntar ao Godofredo, mas o papagaio não queria saber de conversa comigo: seu
entusiasmo pela nossa façanha libertando os passarinhos já havia passado.
Hindemburgo e Pastoff talvez pudessem esclarecer alguma coisa, pois me haviam visto
conversando com ele. Mas não sabiam falar, como o Godofredo, nem mesmo responder com
sinais, como a Fernanda, que infelizmente já havia morrido. E que é que uma galinha poderia
saber a respeito de um homem, de cuja existência os outros até duvidavam?
E não fiquei sabendo, e até hoje me pergunto: quem seria ele?
Cansado de tantas recordações, afasto-me do relógio e caminho até a janela, olho para fora.
Assombrado, em vez de ver os costumeiros edifícios, cujos fundos dão para o meu
apartamento em Ipanema, o que eu vejo é uma mangueira — a mangueira do quintal de
minha casa, em Belo Horizonte. Vejo até uma manga amarelinha de tão madura, como aquela
que um dia quis dar para a Mariana e por causa dela acabei matando uma rolinha. Daqui da
minha janela posso avistar todo o quintal, como antigamente: a caixa de areia que um dia
transformei numa piscina, o bambuzal de onde parti para o meu primeiro vôo. Volto-me para
dentro e descubro que já não estou na sala cheia de estantes com livros do meu apartamento,
mas no meu quarto de menino: a minha cama e a do Toninho, o armário de cujo espelho um
dia se destacou um menino igual a mim...
Saio para a sala. Vejo meus pais conversando de mãos dadas no sofá, como costumavam fazer
todas as tardes, antes do jantar. Comovido, dirijo-me a eles:
— Papai... Mamãe...
Mas eles não me vêem. Nem parecem ter-me ouvido, como se eu não existisse. Ganho o
corredor, passo pela copa onde o relógio está acabando de bater cinco horas. Atravesso a
cozinha, vendo a Alzira a remexer em suas panelas, sem tomar conhecimento da minha
existência. Desço a escada para o quintal e dou com um garotinho agachado junto ás poças
d'água da chuva que caiu há pouco, entretido com umas formigas. Dirijo-me a ele, e ficamos
conversando algum tempo.
Depois me despeço e refaço todo o caminho de volta até meu quarto. Vou à janela, olho para
fora. O que vejo agora é a paisagem de sempre, o fundo dos edifícios voltados para mim,
iluminados pelas luzes do entardecer em Ipanema. Ouço o relógio soando a última pancada
das cinco horas. Viro-me, e me vejo de novo no meu apartamento.
Caminho até a mesa, debruço-me sobre a máquina que abandonei há instantes. Leio as
últimas palavras escritas no papel:
... até desaparecer em direção ao infinito.
Sento-me, e escrevo a única que falta:
FIM
FERNANDO (Tavares) SABINO nasceu em Belo Horizonte, a 12 de outubro de 1923. Fez o curso
primário no Grupo Escolar Afonso Pena e o secundário no Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte.
Aos 13 anos escreveu seu primeiro trabalho literário, uma história policial publicada na revista
Argus, da polícia mineira.
Passou a escrever crônicas sobre rádio, com que concorria a um concurso permanente da
revista Carioca, do Rio, obtendo vários prêmios. Uniu-se logo a Hélio Pellegrino, Oito Lara
Resende e Paulo Mendes Campos em intensa convivência que perduraria a vida inteira. Entrou
para a Faculdade de Direito em 1941, terminando o curso em 1946 na Faculdade Federal do
Rio de Janeiro.
Ainda na adolescência publicou seu primeiro livro, Os Grilos Não Cantam Mais (1941), de
contos. Mário de Andrade escreveu-lhe uma carta elogiosa, dando início à fecunda
correspondência entre ambos. Anos mais tarde, publicaria as cartas do escritor paulista em
livro, sob o título Cartas a um Jovem Escritor (1982). Em 1944 publica a novela A Marca e
muda-se para o Rio. Em 1946 vai para Nova York, onde fica dois anos, que lhe valeram uma
preciosa iniciação na leitura dos escritores de língua inglesa. Neste período escreveu crônicas
semanais sobre a vida americana para jornais brasileiros, muitas delas incluídas em seu livro A
Cidade Vazia (1950). Iniciou em Nova York o romance O Grande Mentecapto, que só viria
retomar 33 anos mais tarde, para terminá-lo em dezoito dias e lançá-lo em 1976 (Prêmio Jabuti
para Romance, São Paulo, 1980), com sucessivas edições. Em 1989 o livro serviria de
argumento para um filme de igual sucesso, dirigido por Oswaldo Caldeira.
Em 1952 lança o livro de novelas A Vida Real, no qual exercita sua técnica em novas
experiências literárias, e em 1954 Lugares-Comuns - Dicionário de Lugares-Comuns e Idéias
Convencionais, como complemento à sua tradução do dicionário de Flaubert. Com O Encontro
Marcado (1956), primeiro romance, abre à sua carreira um caminho novo dentro da literatura
nacional.
Morou em Londres de 1964 a 1966 e tornou-se editor com Rubem Braga (Editora do Autor,
1960, e Editora Sabiá, 1967). Seguiram-se os livros de contos e crônicas O Homem Nu (1960), A
Mulher do Vizinho (1962, Prêmio Fernando Chinaglia do Pen Club do Brasil), A Companheira de
Viagem (1965), A Inglesa Deslumbrada (1967), Gente I e II (1975), Deixa o Alfredo Falar!
(1976), O Encontro das Águas (1977), A Falta que Ela me Faz (1980) e O Gato
Sou Eu (1983). Com eles veio reafirmar as suas qualidades de prosador, capaz de explorar com
fino senso de humor o lado pitoresco ou poético do dia-a-dia, colhendo de fatos cotidianos e
personagens obscuros verdadeiras lições de vida, graça e beleza.
Viajou várias vezes ao exterior, visitando países da América, da Europa e do Extremo Oriente e
escrevendo sobre sua experiência em crônicas e reportagens para jornais e revistas. Passa a
dedicar-se também ao cinema, realizando em 1972, com David Neves, em Los Angeles, uma
série de minidocumentários sobre Hollywood para a TV Globo. Funda a Bem-te-vi Filmes e
produz curtas-metragens sobre feiras internacionais em Assunção (1973), Teerã (1975), México
(1976), Argel (1978) e Hannover (1980). Produz e dirige com David Neves e Mair Tavares uma
série de documentários sobre escritores brasileiros contemporâneos.
Publicou ainda O Menino no Espelho (1982), romance das reminiscências de sua infância, A
Faca de Dois Gumes (1985), uma trilogia de novelas de amor, intriga e mistério, O Pintor que
Pintou o Sete, história infantil baseada em quadros de Carlos Scliar, O Tabuleiro de Damas
(1988), trajetória do menino ao homem fato, e De Cabeça para Baixo (1989), sobre "o desejo de
partir e a alegria de voltar" - relato de suas andanças. vivências e tropelias pelo mundo afora...
Em 1990 lançou A Volta por Cima, coletânea de crônicas e histórias curtas. Em 1991 a Editora
Ática publicou uma edição de 500 mil exemplares de sua novela "O Bom Ladrão" (constante da
trilogia A Faca de Dois Gumes) um recorde de tiragem em nosso país. No mesmo ano é lançado
seu livro Zélia, Uma Paixão. Em 1993publicou Aqui Estamos Todos Nus, uma trilogia de ação,
fuga e suspense, da qual foram lançadas em separado, pela Editora Ática, as novelas "Um
Corpo de Mulher", "A Nudez da Verdade" e "Os Restos Mortais". Em 1994 foi editado pela
Record Com a Graça de Deus, "leitura fiel do Evangelho, segundo o humor de Jesus". Em 1996
relançou, em edição revista e aumentada, De Cabeça para Baixo, relato de suas viagens pelo
mundo afora, e Gente, encontro do autor ao longo do tempo com os que vivem "na cadência
da arte". Também em 1996, a editora Nova Aguilar publicou em 3 volumes a sua Obra Reunida
Em 1998 a Editora Ática lançou, em separado, a novela "O Homem Feito", do livro A Vida Real,
e Amor de Capitu, recriação literária do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. E ainda
em 1998, além de O Galo Músico, "contos e novelas da juventude à maturidade, do desejo ao
amor", a Record editou, com grande sucesso de crítica e de público, o livro de crônicas e
histórias No Fim Dá Certo - "se não deu certo é porque não chegou ao fim" - e em 1999, A
Chave do Enigma No mesmo ano foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis da Academia
Brasileira de Letras pelo conjunto da obra.
Tendo lançado em 2001 uma coletânea completa de "páginas soltas ao longo do tempo", sob o
título Livro Aberto, no mesmo ano publicou as Cartas Perto do Coração - sua correspondência
com Clarisse Lispector - "dois jovens escritores unidos ante o mistério da criação".
http://www.baixelivro.com/
PRÓLOGO
O MENINO E O HOMEM
Q UANDO chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos
do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos,
todo mundo levando e trazendo baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para
aparar a água que caía e para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os
mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era uma distração das mais
excitantes.
E me divertia a valer quando uma nova goteira aparecia, o pessoal correndo para lá e para cá,
e esvaziando as vasilhas que transbordavam. Os diferentes ruídos das gotas d'água retinindo
no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo nas tábuas largas do chão,
formavam uma alegre melodia, às vezes enriquecida pelas sonoras pancadas do relógio de
parede dando horas.
Passado o temporal, meu pai subia ao forro da casa pelo alçapão, o mesmo que usávamos
como entrada para a reunião da nossa sociedade secreta. Depois de examinar o telhado,
descia, aborrecido. Não conseguia descobrir sequer uma telha quebrada, por onde pudesse
penetrar tanta água da chuva, como invariavelmente acontecia. Um mistério a mais, naquela
casa cheia de mistérios.
O maior, porém, ainda estava por se manifestar.
NAQUELE dia, assim que a chuva passou, fui como sempre brincar no quintal. Descalço, pouco
me incomodando com a lama em que meus pés se afundavam, gostava de abrir regos para que
as poças d'água, como pequeninos lagos, escorressem pelo declive do terreiro, formando o
que para mim era um caudaloso rio. E me distraía fazendo descer por ele barquinhos de papel,
que eram grandes caravelas de piratas.
Desta vez, o que me distraiu a atenção foi uma fila de formigas a caminho do formigueiro, lá
perto do bambuzal, e que o rio aberto por mim havia interrompido. As formiguinhas iam até a
margem e, atarantadas, ficavam por ali procurando um jeito de atravessar. Encostavam a cabeça umas nas outras, trocando idéias, iam e vinham, sem saber o que fazer. Algumas acabavam tão desorientadas com o imprevisto obstáculo à sua frente que recuavam caminho, atropelando as que vinham atrás e
estabelecendo na fila a maior confusão.
Do outro lado, entre as que já haviam passado, reinava também certa confusão. Enquanto as
que iam mais à frente prosseguiam a caminhada até o formigueiro, sem perceber o que
acontecia á retaguarda, as ainda próximas do rio ficavam indecisas, indo e vindo por ali, junto à
margem, pintando uma forma qualquer de ajudar as outras a atravessar.
Resolvi colaborar, apelando para os meus conhecimentos de engenharia. Em poucos instantes
construí uma ponte com um pedaço de bambu aberto ao meio, e procurei orientar para ela,
com um pauzinho, a fila de formigas.
Estava empenhado nisso, quando senti que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de
homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:
— Que é que você está fazendo?
Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo
consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se
agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de
duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:
— Quantas formigas eram?
Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética:
uma na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas,
mais três.
— Nove! — exclamei, triunfante.
Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda
em fila, uma atrás da outra.
Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.
— Cobra? — ele arriscou, enrugando a testa, intrigado.
Foi a minha vez de achar graça:
— Que cobra que nada! É a chuva — e comecei a rir também.
— Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água quebra?
— Sei: papel.
Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficamos
conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora
ele fosse cinqüenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe
contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei
fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha aventura de escoteiro perdido
na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei
do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o
meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que
minha amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em
seu poleiro:
— Fernando! — berrou o papagaio, imitando mamãe: — Vem pra dentro, menino! Olha o
sereno!
Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou
com medo do cachorrão, nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois
mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em
roer uma folha de couve.
O homem disse que tinha de ir embora — antes queria me ensinar uma coisa muito
importante:
— Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida?
— Quero — respondi.
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus
ombros e olhos nos meus olhos:
— Pense nos outros.
Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que
tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de
segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.
O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:
— Quem é você? — perguntei ainda.
Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre.
CAPITULO I
GALINHA AO MOLHO PARDO
AO CHEGAR da escola, dei com a, novidade: uma galinha no quintal.
O quintal de nossa casa era grande, mas não tinha galinheiro, como quase toda casa de Belo
Horizonte naquele tempo. Tinha era uma porção de árvores: um pé de manga sapatinho, outro
de manga coração-de-boi, um pé de gabiroba, um de goiaba branca, outro de goiaba
vermelha, um pé de abacate e até um pé de fruta-de-conde. No fundo, junto do muro, um
bambuzal. De um lado, o barracão com o quarto da Alzira cozinheira e um quartinho de
despejo. Do outro lado, uma caixa de madeira grande como um canteiro, cheia de areia que
papai botou lá para nós brincarmos. Eu brincava de fazer túnel, de guerra com soldadinhos de
chumbo, trincheira e tudo. Deixei de brincar ali quando começaram a aparecer na areia uns
montinhos fedorentos de cocô de gato. Os gatos quase nunca apareciam, a não ser de noite,
quando a gente estava dormindo. De dia se escondiam pelos telhados. Tinham medo de
Hindemburgo, que era mesmo de meter medo, um pastor alemão deste tamanhão. Não
sabiam que Hindemburgo é que tinha medo deles. Cachorro com medo de gato: coisa que
nunca se viu. Quando via um gato, Hindemburgo metia o rabo entre as pernas e fugia
correndo.
Pois foi no quintal que eu vi a galinha, toda folgada, ciscando na caixa de areia. Havia sido
comprada por minha mãe para o almoço de domingo: Dr. Junqueira ia almoçar em casa e ela
resolveu fazer galinha ao molho pardo.
Eu já tinha visto a Alzira matar galinha, uma coisa horrível. Agarrava a coitada pelo pescoço,
agachava, apertava o corpo dela entre os joelhos, torcia com a mão esquerda a cabecinha
assim para um lado, e com a direita, zapt! passava o facão afiado, abrindo um talho no gogó. O
sangue esguichava longe. Ela aparava logo o esguicho com uma bacia, deixando que
escorresse ali dentro até acabar. E a bichinha ainda viva, estrebuchando nas mãos da malvada.
Como se fosse a coisa mais natural deste mundo, a Alzira me contou o que ia acontecer com a
nova galinha.
Revoltado, resolvi salvá-la.
Eu sabia que o Dr. Junqueira era importante, meu pai dependia dele para uns negócios. Pois no
que dependesse de mim, no domingo ele ia poder comer de tudo, menos galinha ao molho
pardo.
Era uma galinha branca e gorda, que não me deu muito trabalho para pegar. Foi só correr atrás
dela um pouco, ficou logo cansada. Agachou-se no canto do muro, me olhou de lado como as
galinhas olham e se deixou apanhar.
Não sei se percebeu que eu não ia lhe fazer mal. Pelo contrário, eu pretendia salvar a sua vida.
O certo é que em poucos minutos ficou minha amiga, não fugiu mais de mim.
— O seu nome é Fernanda — falei então. E joguei um pouquinho de água na cabecinha dela:
— Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.
Assim que escureceu, ela se empoleirou muito fagueira num galho da goiabeira, enfiou a
cabeça debaixo da asa e dormiu. Então eu entendi por que dizem que quem vai para a cama
cedo dorme com as galinhas.
NO DIA seguinte era sábado, não tinha aula. Passei o tempo inteiro brincando com ela. Levei
horas lhe ensinando a responder sim e não com a cabeça:
— Você sabe o que eles estão querendo fazer com você, Fernanda?
Ela mexia a cabecinha para os lados, dizendo que não.
— Pois nem queira saber. Cuidado com a Alzira, aquela magrela de pernas compridas. É a
nossa cozinheira. Ruim que só ela. Não deixa a Alzira nem chegar perto de você.
Ela mexia com a cabecinha para cima e para baixo, dizendo que sim.
— Estão querendo matar você para comer. Com molho pardo.
Os olhinhos dela piscaram de susto. O corpo estremeceu e ali mesmo, na hora, ela botou um
ovo. De puro medo.
— Mas eu não vou deixar — procurei tranqüilizá-la, apanhando o ovo com cuidado, para
enterrar na areia depois e ver se nascia pinto.
E acrescentei:
— Hoje não precisa de ter medo, que o perigo todo vai ser amanhã.
Eu sabia que para fazer galinha ao molho pardo tinham de matar quase na hora, por causa do
sangue, que era aproveitado para preparar o molho.
— Vou esconder você num lugar que ninguém é capaz de descobrir.
Junto do tanque de lavar roupa costumava ficar uma bacia grande de enxaguar. A Maria
lavadeira só ia voltar na segunda-feira. Antes disso ninguém ia mexer naquela bacia. Assim que
escureceu, escondi a Fernanda debaixo dela. Fiquei com pena de deixar a coitada ali sozinha:
— Você se importa de ficar ai debaixo até passar o perigo?
Ela fez com a cabeça que não.
— Então fica bem quietinha e não canta nem cacareja nem nada. Principalmente se ouvir
alguém andando aqui fora.
Ela fez com a cabeça que sim.
— Amanhã, assim que puder eu volto. Dorme bem, Fernanda.
Naquela noite, para que ninguém desconfiasse, jantei mais cedo e fui dormir com as galinhas.
NA MANHÃ de domingo me levantei bem cedo e fui dar uma espiada na Fernanda. Encontrei a
pobrezinha mais morta do que viva debaixo da bacia. Mais um pouco e nem ia ser preciso a
Alzira usar o facão. Não sei se por falta de ar, por causa da fome, da sede ou de tudo isto junto:
ela estava deitada de bico aberto e os olhos meio fechados de quem já desistiu de viver.
Água era fácil, eu trouxe um pouco numa tigelinha, despejei pelo bico adentro e ela se
reanimou.
Mas como arranjar comida sem chamar a atenção de ninguém? Ainda não tinham notado a
falta da galinha, nem mesmo pensado em trazer alguma coisa para ela comer. Que diferença
fazia? Se ia ser comida naquele dia mesmo?
O jeito foi furtar um pouco do milho do Godofredo, que no seu poleiro, correntinha presa no
pé, acompanhava tudo com ar intrigado. A galinha come milho e o papagaio leva a fama! —
ele parecia dizer. No que tirei o milho, disparou a berrar:
— Socorro! Socorro! Pega ladrão!
O diabo do papagaio não gostava de mim, eu sabia. Era do Toninho, meu irmão, a quem dava o
pé, todo lampeiro, e ainda abaixava a cabecinha para um cafuné. Ai de mim, se quisesse fazer
o mesmo: me pespegava uma bicada na mão.
— Cala a boca, Godofredo.
— Cala a boca já morreu! Quem manda aqui sou eu!
Joguei na cara dele o resto da água da tigelinha:
— Toma, seu desgraçado, para você aprender.
— Socorro! Socorro! Pega ladrão! — berrava ele, batendo as asas.
Tamanho foi o escarcéu que o Godofredo aprontou, que acabou caindo do poleiro e fitou de
pendurado pelo pé. Foi o tempo de esconder a Fernanda debaixo da bacia e me escafeder
correndo pelo porão adentro. A Alzira já batia os chinelos escada abaixo com suas pernas
compridas, faca na mão, à procura da galinha. Ao ouvir aquele berreiro, veio ver o que estava
acontecendo:
— Que é que esse bicho tem? Não fala nada que preste e de repente destampa essa gritaria
toda!
O papagaio tentava com muito esforço voltar ao poleiro, subindo com a ajuda do bico pela
própria correntinha e se balançando de um lado para outro. Olhava com raiva para a
cozinheira, como a dizer: essa miserável nem para me dar uma mãozinha. Ela também não
achava lá muita graça no Godofredo. Dizia que ele não servia para nada, só sabia sujar de titica
o chão todo debaixo do poleiro, e ela é que tinha de limpar.
— Que é que você quer, coisa ruim? Quem é que é ladrão?
O bicho tinha conseguido com muita dificuldade empoleirar-se de novo, depois de despencar
algumas vezes.
Ofegante, entortou a cabecinha e encarou a cozinheira:
— Sua galinha! Sua galinha!
O Godofredo já havia xingado a Alzira de nomes feios, de modo que ela achou desaforo ser
chamada de galinha. E respondeu no mesmo tom, brandindo o facão para o papagaio:
— Galinha é você! Galinha verde!
Lá do fundo escuro do porão, onde tinha ido me esconder, vi a Alzira olhar ao redor:
— Por falar nisso, onde é que se meteu a galinha?
Apavorado, ouvi o Godofredo gritar, com sua voz de currupaco-papaco:
— Na bacia! Na bacia!
Além do mais, era delator, o miserável. Dedo-duro, traidor, entregava ao carrasco o seu
próprio semelhante (ou quase). Antes que fosse tarde, saí do meu esconderijo lá no porão,
como quem não quer nada, vim me sentar na própria bacia.
— Uai, que é que você estava fazendo ali escondido, Fernando?
— Nada não...
A cozinheira me olhava com ar de suspeita:
__ Boa coisa é que não há de ser. Alguma esse menino anda arrumando, com esse ar de
cachorro que quebrou a panela.
— Na bacia! Na bacia! — o Godofredo berrava.
— Cala essa boca, seu filhote de urubu! — gritei.
— Na bacia! Na bacia! — ele continuava.
— Que é que esse tagarela está falando? — perguntou a Alzira.
— Está te chamando de nabacinha.
— Nabacinha? Que quer dizer isso?
— Quer dizer vagabunda — respondi, a cara mais séria deste mundo.
A Alzira arregalou os olhos, ergueu no ar o facão:
— Vagabunda? Está me chamando de vagabunda? Nabacinho é você, seu bicho ordinário! Não
sei onde estou que não te corto o pescoço, asso no espeto e como, ouviu? E ainda chupo os
ossinhos um por um!
Ela correu de novo os olhos em torno:
— Por falar em comer: quede a galinha? Já está na hora de fazer o almoço. Onde é que ela se
meteu?
— Não sei...
— Você não estava brincando com ela ontem, menino?
— Isso foi ontem. Hoje eu não vi ela ainda
— Será que fugiu? Ou alguém roubou?
E ela olhou para o papagaio, cismada agora com o silêncio dele:
— Vai ver que é por isso que esse nabacinho de uma figa estava gritando pega ladrão. Algum
ladrão de galinha.
Agarrei a idéia no ar, era a salvação:
— Isso mesmo! Quando eu estava ali no quintal vi um homem passar correndo... Levava uma
coisa escondida embaixo do paletó. Só podia ser a galinha.
A Alzira não parecia acreditar muito na história. Pelo contrário, ficou mais desconfiada. E
naquele exato momento a Fernanda resolve se mexer debaixo da bacia, fazendo um
barulhinho na lata com o bico e com os pés. Continuei sentado e, para disfarçar, comecei a
bater com os dedos na bacia como se tocasse tambor. A galinha deve ter entendido, pois logo
ficou quieta. Mas a Alzira continuava com ar de desconfiança:
— Esse menino está com um jeito muito velhaco. Sei não... Alguma ele andou fazendo.
E saiu pelo quintal, à procura da galinha, olhando aqui e ali: nos galhos das árvores, atrás do
barracão, no meio dos bambus. Depois foi contar para mamãe que a galinha havia sumido.
Fui atrás, para o que desse e viesse. Escutei tudo. Mamãe torcia as mãos:
— E agora, como vai ser? Como é que ela foi sumir assim, sem mais nem menos?
— Sei lá — respondeu a Alzira: — Não acredito que tenham roubado, como diz o Fernando. Vai
ver que saiu voando e pulou o muro. Bem que eu pensei em cortar as asas dela e me esqueci.
Agora é tarde.
E a cozinheira me apontou:
— Para mim, a gente anda precisando de cortar as asas é desse menino.
— Está quase na hora do almoço — disse minha mãe: — O Dr. Junqueira está para chegar de
uma hora para outra, e como é que a gente vai fazer sem a galinha? O Domingos vai ficar
aborrecido.
Dali a pouco era o meu pai quem chegava da rua, trazendo o jornal de domingo debaixo do
braço. Quando mamãe lhe deu a triste notícia, para surpresa minha e dela, ele não se
aborreceu:
— Faz outra coisa. Macarrão, por exemplo. O Dr. Junqueira é bem capaz de gostar de
macarrão.
E foi ler o jornal na varanda.
Filho de italiano, quem gostava de macarrão era ele. E da macarronada que a Alzira fazia todo
mundo gostava.
Pois o Dr. Junqueira não só gostou, como repetiu duas vezes, para grande satisfação de
mamãe. Papai abriu uma garrafa de vinho daquelas de cestinha de palha, e os dois a
esvaziaram, depois de dar um pouquinho para mim e meus irmãos, com água e açúcar.
Guardanapo enfiado no colarinho, o Dr. Junqueira limpou os bigodes, satisfeito:
— Ainda bem que era essa macarronada tão boa. Eu estava com medo que fosse galinha. Se
tem uma coisa que eu detesto é galinha. Principalmente ao molho pardo.
NEM POR ISSO senti que minha amiga Fernanda não estava mais condenada à morte. Mesmo
porque, meu pai gostava também de galinha, com ou sem o Dr. Junqueira. Por outro lado, ela
não podia ficar escondida o resto da vida (eu não tinha a menor idéia de quanto tempo vivia
uma galinha). E na manhã seguinte a Maria viria lavar roupa, ia descobrir a Fernanda encolhida
debaixo da bacia.
Depois que o almoço terminou e o Dr. Junqueira se despediu, fui lá perto do tanque fazer uma
visitinha a ela, resolvido a ganhar tempo:
— Você hoje ainda vai dormir aí, mas amanhã eu te solto, está bem?
Ela fez que sim com a cabeça. Deixei água na tigelinha e mais um pouco de milho furtado de
novo do Godofredo. Antes que o diabo do papagaio pusesse a boca no mundo eu avisei:
— Se você falar alguma coisa, mando a Alzira fazer papagaio ao molho pardo para o jantar.
Ele fez cara de quem comeu e não gostou, mas ficou calado, vai ver que pensando um jeito de
se vingar.
De manhãzinha, antes que a Maria lavadeira chegasse, fui até lá, levantei a bacia e peguei a
Fernanda, procurei mamãe com ela debaixo do braço:
— Olha só quem está aqui. Mamãe se espantou:
— Uai, ela não tinha sumido? Onde é que você encontrou essa galinha, Fernando?
De repente seus olhos se apertaram num jeito multo dela, quando entendia as coisas: havia
entendido tudo. Antes que me passasse um pito, eu avisei:
— Se tiverem de matar a minha amiga, me matem primeiro.
Mamãe achou graça quando soube que ela se chamava Fernanda e resolveu não se importar
com o que eu tinha feito, pelo contrário: deixou que a galinha passasse a ser um de meus
brinquedos. Só proibiu que eu a levasse para dentro de casa. Fernanda me seguia os passos
por toda parte, como um cachorrinho.
E ela continuou minha amiga, até morrer de velha, não sei quanto tempo mais tarde.
Só sei que alguns dias depois do almoço do Dr. Junqueira, mamãe comprou um frango.
— Esse vai se chamar Alberto — eu disse logo.
— Pois sim — disse minha mãe, e mandou que a Alzira tomasse conta do frango.
No dia seguinte mesmo, no almoço, comemos o Alberto. Ao molho pardo.
CAPITULO II
O CANIVETINHO VERMELHO
TODA semana eu ganhava de minha mãe dois mil-réis para ir ao cinema. Dava para pagar a
entrada, o bonde na ida e na volta, e ainda sobrava para comprar um picolé (ou um saco de
pipocas).
Eu costumava assistir aos domingos, na matinê do cinema Avenida, a animada sessão de
bangue-bangue. A molecada vibrava assim que as luzes se apagavam, preparando-se para
acompanhar as cenas mais emocionantes, com uma gritaria de fazer o cinema vir abaixo.
Naquele dia, quando entrei, a fita já havia começado. Não vi os letreiros do princípio, de modo
que não cheguei a saber nem como se chamava. Estranhei o silêncio ali dentro, como se não
houvesse ninguém na platéia. Depois de me ajeitar no escuro, procurei prestar atenção na
tela.
Não sei por que diabo passavam naquele dia um filme diferente, sem bandido nem mocinho,
tiroteios ou perseguições a cavalo. Era uma história esquisita, meio difícil de entender, passada
na Inglaterra: a de um homem que fazia milagres.
Estavam ele e mais dois companheiros num bar, discutindo sobre a existência ou não de
milagres. Depois que os outros foram embora, o homem, já meio tonto de tanta cerveja que
havia tomado, levanta a cabeça tombada na mesa e fala, apontando o lustre do bar:
— Milagre para mim é se aquele lustre virasse de cabeça para baixo.
Na mesma hora o lustre vira de cabeça para baixo.
Ele fica impressionado com aquilo, sai do bar e vai cambaleando pela rua, apoiado na sua
bengala. De repente a bengala fica presa pela ponta num ralo de bueiro, em pé sem que ele a
segure, como se fosse uma árvore. Então ele ordena, a rir:
— Pois que vire logo uma árvore!
Na mesma hora a bengala se transforma numa árvore, cada vez mais alta, cheia de galhos que
crescem para cima e para os lados. Ele ri às gargalhadas do milagre que acabou de fazer,
quando surge um guarda no maior espanto:
— Que árvore é essa aí, que não tinha antes? Ao ver o homem, acha suspeito o jeito dele,
resolve prendê-lo porque parece embriagado. Mas o homem se livra do guarda com um
safanão, falando:
— Vai para o inferno!
O guarda sobe feito um foguete em direção ao inferno (apesar do inferno, naturalmente, ser
para baixo). Ele mal tem tempo de corrigir, com pena do guarda:
— Para o inferno não! Para a Califórnia!
Aí o filme mostra uma confusão dos diabos no trânsito de uma cidade da Califórnia, nos
Estados Unidos, acho que Los Angeles. Os guardas americanos abrem caminho para ver o que
está acontecendo, e encontram um policial inglês solene e empertigado, farda preta e
capacete alto, que tenta comandar o tráfego, perdido no meio dos automóveis.
No dia seguinte o homem, que trabalha numa loja de fazendas, recebe ordem do patrão para
que não vá embora enquanto não arrumar tudo direitinho. Ele passou o dia desenrolando
peças de fazenda para mostrar às freguesas, e agora estão todas as peças espalhadas, na
maior desarrumação. Sozinho na loja, cansado, doido para ir embora, olha desanimado ao
redor, quando se lembra do poder de fazer milagres.
Foi só bater palmas mandando que tudo voltasse ao seu lugar, e as peças de fazenda começam
a se enrolar sozinhas, voando até encontrar seus lugares nas prateleiras. E a loja fica
arrumadinha.
Depois de mil e uma peripécias, o homem que faz milagres resolve usar o seu poder para
consertar o mundo logo de uma vez, acabar com as guerras e as injustiças, fazer com que
todos os países vivam em paz. Então convoca para uma reunião os reis, presidentes, ministros,
generais, todos os que mandam nos povos do mundo inteiro. Bastava pensar nesse ou
naquele, e cada um ia aparecendo.
Quando estão todos reunidos, o homem que faz milagres ordena que eles acabem com os
desentendimentos de uma vez por todas, façam as pazes e não briguem mais.
Mas eles não estão de acordo com aquilo, começam a discutir, ninguém se entende, e o
homem acaba perdendo a paciência:
— Já que vocês não se emendam — grita ele — então que este mundo acabe de uma vez!
No que fala isto, o mundo se abre como se tivesse explodido. Todos saem voando pelos ares,
entre casas, automóveis, árvores, vacas e tudo mais. Rolando no espaço, desesperado, o
homem ainda tem tempo de pedir:
— Que tudo volte a ser como era antes do primeiro milagre!
Na mesma hora ele se vê no bar, levantando a cabeça da mesa e olhando para o lustre:
— Milagre para mim é se aquele lustre virasse de cabeça para baixo.
O lustre continua imóvel, sem se mexer. E o filme acaba.
FUI para casa impressionado com a história dos milagres. De noite, na cama, continuei
pensando no filme, sem conseguir dormir. O que me intrigava era a espécie de milagres que o
homem pedia: tudo bobagem, a bengala virar árvore, salvar o mundo, coisas assim. Comigo,
seria diferente. Eu haveria de pedir outros milagres. Como, por exemplo...
— Apaga essa luz que eu quero dormir.
Era o Toninho. Dormíamos no mesmo quarto. Mais velho do que eu, já estudava no turno da
manhã, tinha de acordar cedo. Era assim quase toda noite: eu gostava de ler antes de dormir,
e ele pedindo que apagasse a luz. O botão ficava perto da minha cama.
E então aconteceu.
A luz se apagou sozinha, quando olhei para ela como fez o homem no filme e experimentei
ordenar que se apagasse. Não precisei pronunciar uma única palavra: foi só pensar e ela se
apagou.
Toninho, virado para o outro lado, não chegou a perceber nada. Certamente achou que eu me
levantei e fui até a parede apagar a luz, como fazia sempre.
Fiquei deslumbrado: quer dizer que eu também podia fazer milagres! Para tirar qualquer
dúvida, ordenei mentalmente que a luz se acendesse de novo. li ela se acendeu.
Que brincadeira é essa? — exclamou o Toninho, virando-se na cama, os olhos cheios de sono:
— Fica acendendo e apagando a luz! Apaga de uma vez!
Para que ele não desconfiasse, tornei a apagar a luz, desta vez por mim mesmo, sem milagre
nenhum.
Nem voltei para a cama. De pé, no escuro, mandei que a noite se acabasse e o dia nascesse de
uma vez. E vi pela janela o céu começar a clarear rapidamente, o sol subindo no horizonte
como um balão. Toninho se ergueu na cama, esfregando os olhos:
— Puxa, como eu dormi! Já deve ser tarde, vai ver que perdi a hora.
E vestiu correndo o uniforme do colégio.
Depois de me vestir também, saí para o quintal, disposto a iniciar a minha vida de milagres. O
primeiro que fiz foi ao dar com a Fernanda:
— Gosto tanto de você, Fernanda, que vou fazer aparecer uma porção de galinhas iguais a
você aqui no quintal.
No mesmo instante o quintal se encheu de galinhas, todas parecidas, a ponto de eu não saber
qual era a Fernanda. Eram todas do mesmo tamanho e da mesma cor. Naquele momento a
Alzira cozinheira surgiu na escada da cozinha para bisbilhotar, como fazia sempre, e depois ir
contar para mamãe. Esbugalhou os olhos, levantou os braços e quase caiu para trás, ao ver
tanta galinha. Embarafustou-se pela casa adentro, a gritar:
— Dona Odete! Açode, dona Odete! Vem ver uma coisa!
Sem perda de tempo, mandei que as galinhas sumissem, só ficasse a Fernanda. Quando a
Alzira voltou, acompanhada de mamãe, só havia uma galinha ciscando distraída na caixa de
areia, como de hábito.
— Onde é que você viu tanta galinha, Alzira? Ficou maluca? — e minha mãe sorriu, balançando
a cabeça.
A Alzira olhava o quintal, com cara mesmo de maluca:
— Eram mais de mil! Agorinha mesmo, não faz nem um minuto! Eu vi! Juro pelo que há de
mais sagrado!
Resolvi pensar um pouco, antes de fazer outras proezas. O meu poder tinha de ser bem
aproveitado. Eu não sabia se ia usá-lo o tempo que quisesse ou só para certo número de
milagres. O jeito era usar o próprio poder para ficar sabendo.
— Quantos milagres eu posso fazer? Dura o tempo todo, esse poder, ou acaba de uma hora
para outra?
Ninguém me respondeu. Não havia ninguém mesmo para responder, a não ser o Godofredo, e
que é que um papagaio entende de milagres? Eu não sabia nem mesmo a quem me dirigir. Se fosse Deus que tivesse me dado aquele poder, Ele também
não respondeu. Com certeza não estava querendo se comprometer.
— Então está bem — concluí: — Vamos tirar o melhor proveito disso.
UM DOS sonhos da minha vida era ter em casa uma piscina. Tinha aprendido a nadar, já havia
disputado mesmo uma competição na piscina do Minas Tênis Clube, categoria de petiz,
pretendia me tornar campeão, nadando no mínimo tão bem como Tarzã. Gostava também de
mergulhar, embora achasse que o fôlego mal dava para a gente se distrair debaixo d'água, não
mais que um minuto e pouco. Agora, poderia fazer o milagre de ficar sem respirar o tempo que
quisesse.
E mais: sempre imaginei uma piscina que tivesse numa de suas paredes um túnel para, através
dele, chegar a um esconderijo que fosse só meu, um lugar que só eu soubesse existir. Uma
espécie de salão subterrâneo sem outra entrada que não fosse pelo túnel debaixo d'água. Lá
dentro eu teria todas as coisas de que mais gostava: meus brinquedos, meus livros, meu
futebol de botão, minhas bolas de gude, minha coleção de selos, de figurinhas, de marcas de
cigarro. Tudo ali era automático: bastava apertar um botão e se abria uma janelinha na
parede, aparecia um cachorro-quente; várias torneirinhas comandadas por botão deixavam
escorrer groselha, soda-limonada, guaraná, laranjada e tudo quanto é espécie de refrescos.
Haveria a qualidade e a quantidade que eu quisesse de sorvete, doce, bala, bombom. Puxando
uma alavanca, eu fazia o teto se abrir numa espécie de clarabóia, por onde podia ver o céu e
até empinar um papagaio. Teria um telescópio também, dos mais possantes do mundo, para
ver a lua e as estrelas. E tudo que eu quisesse.
Era o que eu imaginava na cama, antes de dormir, sem acreditar que um dia tudo viesse a ser
realidade. Ali estava a oportunidade, e não perdi tempo: mandei que a caixa de areia virasse
uma piscina, com tudo o que eu tinha imaginado.
O susto que a Fernanda levou quase me mata de rir: a coitada mal teve tempo de saltar para a
terra, quando viu a areia em que pisava se converter na água azul de uma bela piscina.
Tirei a roupa e pulei de cabeça.
Logo encontrei o túnel, que era curto como eu tinha previsto, uns três metros de
comprimento. Foi fácil atravessá-lo debaixo d'água. Uma curva para cima, como eu tinha
imaginado, levou-me à saída, que era uma espécie de poço no chão, com uma escadinha de
metal, dessas que toda piscina tem. Encontrei toalhas para me enxugar e um roupão para
vestir. Eu ria de felicidade: tudo o que eu queria ali estava. Aquele era o meu mundo, o meu
domínio, a que só eu tinha acesso. Eu me sentia um verdadeiro rei.
Tinha de tomar cuidado para que não descobrissem o meu segredo. Ninguém acredita em
milagres. E eu não sabia como usar o meu poder para não deixar que ficassem sabendo. Ao
voltar para o quintal através da piscina, vi no alto da escada da cozinha, a Alzira estatelada de
espanto. Ao dar por mim, ela entrou correndo pela casa adentro:
— Socorro, dona Odete! Deus nos acuda! Vem ver uma coisa!
Mamãe veio com ela e, como da outra vez, não viu nada: eu já havia mandado que a piscina
voltasse a ser uma simples caixa cheia de areia.
— Essa mulher não está boa da bola — mamãe comentou, resignada: — Onde é que você viu
piscina?
A Alzira agitava os braços para o céu, aparvalhada:
— Sou capaz de jurar! Sou capaz de jurar!
Passei o dia inteiro experimentando com cautela o meu poder. Ordenei que o dia se
convertesse em feriado, para não precisar de ir à escola. Em pouco era o Toninho que
regressava do colégio, todo satisfeito:
— Suspenderam as aulas. Hoje é feriado.
— Feriado como? — estranhou minha mãe.
— Sei lá — disse ele: — Dia santo, acho.
— Dia santo? — mamãe estranhou mais ainda: — Que santo é esse, que eu não estou
sabendo?
— Dia de São Nunca, mamãe — informei, satisfeito.
E fui para o quarto fazer a lista das coisas que eu queria que acontecessem, para experimentar
uma por uma. A primeira delas...
BEM, aí é que estava o problema, tantas foram as idéias que me vieram ao mesmo tempo.
Uma, por exemplo, que foi sempre um grande sonho meu: ficar invisível. Mas, pensando bem,
para que eu queria ficar invisível? Que vantagem havia no fato de não ser visto pelos outros? A
única que me ocorreu foi a de entrar no cinema sem pagar. Mas corria o risco de alguém se
sentar em cima de mim, pensando que a poltrona estivesse vazia.
Em todo caso, fui ao espelho e falei para a minha imagem:
— Fique invisível!
O susto da minha vida: na mesma hora vi a minha roupa vazia, flutuando no ar, os meus
sapatos se mexendo sozinhos, as calças sem minhas pernas dentro, as mangas da blusa sem
braços, a gola sem pescoço e eu sem cabeça. Era mesmo para assustar qualquer um! Já ia tirar
a roupa toda para que desaparecesse até a forma do meu corpo, mas achei mais prático fazer
a roupa se tornar invisível também. Não seria nada engraçado se tivesse de voltar a ficar visível
e aparecesse pelado na vista de todo mundo.
Senti uma grande aflição quando não vi mais nada diante do espelho. Tive que me apalpar para saber que ainda estava ali.
Saí do quarto e fui ver o que acontecia. Passei pela minha mãe na sala e ela olhou através de
mim como se eu não existisse. Não resisti e chamei-a:
— Mamãe...
Ela olhou em direção à minha voz:
— Fernando? Onde é que você está?
— Aqui... — e fui me colocar às suas costas. Ela se voltou na cadeira:
— Aqui onde? Por que você está se escondendo?
Ao ouvir de novo minha voz, vinda agora de outra direção, ela se levantou, desnorteada, deu
uma volta completa com o corpo, inspecionando a sala inteira. Depois se curvou para olhar
debaixo da mesa:
— Onde é que se meteu esse menino, minha Nossa Senhora.
Embarafustei-me rindo pelo corredor adentro, fui até a cozinha. Dei com a Alzira de costas
para mim, diante do fogão. Fiquei rente dela, e comecei a destampar as panelas, para ver o
que tinha dentro.
Nem cheguei a ver: ela soltou um berro e pulou para trás, ao dar com as tampas se erguendo
no ar. Então peguei numa panela pelo cabo e a levei até a mesinha ao lado da pia. Ela
acompanhou com olhos arregalados a panela no ar, botou a boca no mundo:
— Te esconjuro! Virgem Santíssima, tem dó de mim! Essa casa tá mal-assombrada!
E disparou em direção à porta dos fundos, levando um trambolhão ao esbarrar de cheio em
mim:
— Ui, que é isso? Ai, meu santo, tem demônio aqui pra todo lado!
Num segundo ela despencava escada abaixo, indo se refugiar no seu quarto. Refeito do susto
que levei eu próprio, quando ela quase me atirou ao chão, fui atrás. Por pouco não atropelo a
Fernanda, que estava no meio do quintal, e não se afastou para me dar passagem. Pela
janelinha do barracão vi a cozinheira ajoelhada no chão diante de um santinho pregado na
parede, fazendo o nome-do-padre, um atrás do outro.
Antes de reaparecer, resolvi ainda passar um susto no Godofredo. Cheguei bem pertinho do
poleiro e o papagaio ficou com aquele olhar parado assuntando o ar, como se tivesse ouvido
algum barulhinho. Quando ia cutucá-lo com o dedo, para derrubá-lo do poleiro, o miserável
virou rápido a cabeça e me deu uma bicada na mão. Quem se assustou fui eu:
— Desgraçado, você me paga por essa papagaiada.
Chegou a sair sangue. Como é que ele teria me visto?
Só quando voltei ao meu quarto, antes de me tornar visível, é que reparei que o dedo ficou
sujo de fuligem quando mexi nas panelas.
PENSEI em experimentar outros milagres: ler o pensamento das pessoas, adivinhar o futuro,
voltar ao passado, enxergar através das paredes, diminuir ou aumentar de tamanho como
Alice no Pais das Maravilhas, ouvir de longe o que os outros falavam, ver à distância como um
binóculo, enxergar micróbios como num microscópio, ter a força do Super-Homem, e outras
coisas fantásticas que sempre senti vontade de fazer. Mas tudo isso agora me parecia
bobagem. Que adiantava saber o que os outros pensavam, ou estavam fazendo atrás das
paredes, ou falando longe de mim?
Mas da idéia do Super-Homem passei a outra, esta sim, absolutamente sensacional: eu queria
conhecer ao vivo um dos meus heróis, Tarzã em pessoa!
— Quero conhecer Tarzã.
No mesmo instante ouvi lá fora o famoso grito do Filho das Selvas, tão meu conhecido e
impossível de ser imitado:
— Oôôôiôiiiôiôôôu!
Era o mesmo grito com que ele chamava Tantor, o elefante, nos momentos de perigo. Ouvi
uns guinchos e dei com a Chita a meu lado, puxando-me o braço. A macaca me levou até o
quintal e lá estava Tarzã, enorme, colossal, à minha espera. Abaixando-se, mandou que eu
subisse às suas costas. Num salto se dependurou num galho da mangueira, dali para outro
galho mais alto, outro ainda, e lá fomos nós, Tarzã já se balançando num cipó comigo às
costas, lançando-se no ar, entre as folhas verdes e os galhos das árvores de uma imensa
floresta. Para onde estaria me levando? Eu abria bem os olhos, para não perder nada daquele
passeio pela selva, nas costas de Tarzã. Aquilo era mais assustador que a montanha-russa, eu
morria de medo de cair e me esborrachar lá embaixo. Mal conseguia me segurar nos ombros
largos e suados do Homem-Macaco.
E o pior é que ele começou a sentir cócegas. À medida que minhas mãos iam escorregando em
suas costas ele se sacudia todo, rindo cada vez mais. Eu é que não achava graça nenhuma,
quase me despencando daquela altura. Já havia imaginado Tarzã nas situações mais
fantásticas, mas nunca rindo às gargalhadas.
Antes que caísse ali de cima, mandei que ele se transformasse num pára-quedas. E vim
descendo de mansinho, como se tivesse saltado de um avião, até cair no quintal da minha
casa.
Estava decepcionado com Tarzã: só não mandei que fosse para o diabo porque me lembrei do
guarda naquele filme. Mas eu era mais poderoso, eis tudo. Era capaz de fazer mais prodígios
do que ele, até do que Mandrake.
Seria mesmo?
Resolvi convocar o famoso mágico. Ele logo me apareceu com a sua capa preta e cartolinha na
cabeça. Tinha o ar cansado e sua casaca me pareceu meio velha e surrada, como a de um
mágico de circo. Vinha seguido de Lotar, seu fiel ajudante. Preferi dispensar o negrão:
— Você não. Pode ir embora.
Lotar fez uma curvatura em despedida e se evaporou no ar. Então perguntei ao Mandrake:
— Quem é mais poderoso? Quem faz mágicas ou quem faz milagres?
— Quem faz milagres — respondeu ele modestamente.
— Então sou mais poderoso que você.
— Não, porque o seu poder vai acabar, e o meu vai continuar eternamente.
— Como é que você sabe?
— Sei, porque o meu mundo é o das figurinhas, onde tudo dura para sempre, ao passo que, no
seu, tudo começa e acaba.
Agarrei-me à sua mão, ansioso:
— Quando é que vai acabar o meu poder de fazer milagres?
Quando você quiser.
— Nunca vou querer.
— É o que você pensa.
— Então faz uma mágica bem boa para mim. Ele tirou a cartola, me olhou no fundo dos olhos,
como se estivesse me hipnotizando, e falou:
— Meta a mão nesta cartola, que tem uma coisa para você.
Fiz como ele mandava e tirei da cartola um canivetinho vermelho. Tinha várias lâminas e até
uma tesourinha, mas não passava de um canivete. Achei aquela mágica meio boba. Em todo
caso, era um presente dele — embora eu, com o meu poder milagreiro, pudesse conseguir
coisa mil vezes melhor.
Sem uma palavra, ele botou a cartola na cabeça, fez meia-volta e se afastou, saindo para a rua
pelo portão da frente, como uma pessoa qualquer.
FIQUEI impressionado com o que o Mandrake me havia dito. A minha sensação era de que o
poder de fazer milagres ia se acabar de uma hora para outra. Por via das dúvidas, resolvi
empurrar a noite mais para diante e fazer ainda um grande milagre naquele dia.
Qual podia ser?
De súbito me ocorreu uma idéia, saltei de alegria:
— Eu quero visitar o Sítio do Pica-pau Amarelo!
No mesmo instante me vi andando por uma estradinha, passei por uma porteira, e lá estava a
Narizinho Arrebitado sentada nos degraus da varanda do famoso sítio, tendo Emília a seu lado.
Mandei que a tarde se prolongasse o tempo que eu quisesse e passei toda ela conversando
com aquele pessoalzinho, um por um. O Visconde de Sabugosa me pareceu muito mais
engraçado pessoalmente que nos livros. Veio me cumprimentar todo emproado, tirando a
cartolinha num salamaleque:
— Bem-vindo a esta casa, Dom Fernando.
O Marquês de Rabicó me espiava de longe, meio encafifado com a minha aparição, mas
acabou se chegando, a mexer no ar o seu rabinho de saca-rolha. Depois Dona Benta veio me
oferecer umas mães-bentas e uma deliciosa xícara de chocolate. Tia Anastácia estava
resmungando lá na cozinha, até parecia a Alzira, só que era preta e gordona. Estava se
queixando do Pedrinho, que certamente fizera mais uma de suas travessuras.
Quando me viu, Pedrinho me chamou de lado e perguntou se era verdade que eu sabia fazer
milagres.
— Mais ou menos — respondi, encabulado. — Eu queria que você fizesse um para mim —
pediu ele: — É por causa da tia Anastácia. Ela não acredita que a terra é redonda e que os
japoneses estão de cabeça para baixo, só não caem por causa da atração da Terra.
Com o ar superior de quem sabe as coisas, falei:
— É a lei da gravidade. É só acabar com ela, para ver o que acontece.
Não era propriamente uma ordem, nem mesmo um pedido de milagre, mas soou como se
fosse. E de repente Pedrinho à minha frente, eu, Narizinho na varanda, a varanda, o sítio
inteiro com a Emilia, o Visconde, o Marquês, a Dona Benta, a tia Anastácia, as árvores, as
casas, tudo saiu voando pelos ares como numa tremenda ventania. Me lembrei do filme sobre
o homem que fazia milagres e, entre duas cambalhotas, mal tive tempo de fazer como ele,
pedir depressa para acabar com aquilo, voltar ao que era antes dos milagres.
— Apague essa luz que eu quero dormir. Era a voz do Toninho. Abri os olhos e vi que eu estava
na cama, pronto para dormir. Olhei intensamente para a luz e mandei que ela se apagasse.
Nada aconteceu. Então fui até lá e apertei o botão. Voltei para a cama e em pouco tempo
estava dormindo.
Ao acordar, mal me lembrei dos milagres, senão de maneira confusa, como se tudo não tivesse
passado de um sonho. Mas depois de vestir a roupa, ao meter a mão no bolso da calça,
encontrei um objeto, retirei para ver: era um canivetinho vermelho.
CAPÍTULO III
COMO DEIXEI DE VOAR
Naquele tempo os aviões se chamavam aeroplanos. Era só passar um avião e eu saía no meio da
molecada, em algazarra pela rua, apontando o céu e gritando:
— Aeroplano! Aeroplano!
Ouvindo a gritaria, os mais velhos se debruçavam nas janelas e olhavam para cima, procurando
Ver também. Não eram aviões grandes nem de metal como os de hoje, mas teco-tecos de
madeira e lona, duas asas de cada lado, uma em cima da outra, presas com arames cruzados.
Nele só cabiam dois aviadores que a gente podia ver, a cabecinha de fora, com um gorro de
couro e óculos tapando os olhos para não entrar poeira.
Uma vez papai nos levou ao campo de aviação do Prado para ver as acrobacias. Eu mal
conseguia pronunciar essa palavra, quanto mais saber o que ela significava.
Foi um deslumbramento.
Eram dois ou três aviõezinhos: levantavam vôo como se fossem de brinquedo e faziam
piruetas, voavam de cabeça para baixo, desciam, quase se arrastavam no chão e tornavam a
subir.
Um deles começou a soltar fumaça, fazendo letras no ar, escrevendo palavras inteiras.
A certa altura dois aviões passaram a voar juntinhos, um em cima do outro, quase se
esbarrando. Então um dos aviadores do que estava embaixo realizou a proeza máxima, eu não
podia acreditar no que meus olhos viam: saiu do seu buraquinho no avião e foi se agarrando
pelo lado de fora, subiu na asa e se dependurou nas rodas do outro! Depois montou no eixo
como se estivesse fazendo ginástica numa barra, pernas para o ar, passou para a asa de baixo,
agarrado na de cima, e foi assim que voltou à terra, triunfante, até o avião pousar.
Fizeram mil outras façanhas de encher os olhos.
De repente, a multidão que assistia ao espetáculo aéreo, dentro e fora do campo de pouso do
Prado, soltou um grito: um dos aviões que acabara de passar baixinho em cima de nossas
cabeças não conseguiu ganhar altura e foi cair lá fora, no descampado, para os lados do
Calafate.
Um caminhão partiu em disparada para o local. Em pouco voltava, trazendo os destroços do
avião e os dois pilotos, um deles bastante machucado (pude vê-lo encolhido ao lado do
motorista, com o rosto ensangüentado). Os mais velhos diziam ao redor, sacudindo a cabeça,
admirados, que ele tinha nascido de novo.
O desastre não chegou a me impressionar. Do espetáculo ficou a lembrança da maravilha que
era aquilo, poder pilotar um avião. E resolvi não esperar ser grande para poder realizar o meu
desejo: eu mesmo fabricaria um avião.
Para isto, aproveitaria um carrinho de pedal que meus pais me tinham dado no meu último
aniversário. Era um carro de corrida, e para dirigi-lo eu entrava nele como um piloto no avião.
Bastava colocar as asas.
Cortei uns bambus do quintal, preparei umas taquaras como fazia para a armação de um
papagaio, só que bem mais longas e grossas; com elas e pedaços de um velho lençol colados
com grude de polvilho, fiz duas asas, que amarrei de cada lado do carrinho. Depois preguei na
traseira umas asas mais curtas e o leme, também de pano e taquara.
Estava pronto o avião, mas e o motor?
Levei algum tempo estudando um aviãozinho de brinquedo que me serviu de modelo. Tinha
uma hélice presa num elástico esticado até um gancho entre as asas: era só enrolar a hélice
com o dedo e soltar, que o aviãozinho saía voando.
Estava ali o meu motor: bastava imitá-lo, em tamanho maior.
A hélice foi aproveitada das pás de um ventilador imprestável que encontrei no quarto de
despejo, lá no barracão do fundo do quintal. A borracha de uma velha câmara de ar da
bicicleta do Toninho faria o papel do elástico. Foi um custo conseguir enrolá-la, depois de
esticada entre a hélice e o prego fincado junto às asas para servir de gancho: a câmara de ar ia
se enrolando, se enrolando, a hélice ia ficando cada vez mais dura para girar e de repente se
desenrolava toda, por pouco não me decepou a mão. O avião chegava a se erguer do chão, eu
tinha de segurá-lo para que não levantasse vôo sem que eu tivesse tido sequer tempo de
entrar nele.
Acabei encontrando a solução: liguei a hélice, por um sistema de cordas, à minha manivela de
empinar papagaio. Com ela no colo, eu podia enrolar a borracha, já sentado no avião. Depois,
era só largar a manivela, que ela deixava a borracha se desenrolar sozinha, impulsionando a
hélice.
Tudo pronto para a grande aventura, coloquei o aviãozinho num canto do quintal, e instalei-
me dentro dele. Não faltava nem uma touca de banho de minha mãe e uns óculos de carnaval,
que eu usava como os de um aviador de verdade. E me preparei para a decolagem, torcendo a
manivela até o máximo que pude.
A câmara de ar, enrascada como um cipó, se desenrolou com toda a força, impulsionando a
hélice. E lá fui eu, deslizando pelo chão!
Só que o avião não levantou vôo: correu comigo pelo quintal e espatifou-se de encontro ao
muro. Fiquei todo machucado (embora não tanto quanto o aviador de verdade no desastre do
Prado). O pior é que perdi o meu carrinho de corrida, que ficou para sempre arrebentado.
Com essa desastrada aventura, desisti de voar — pelo menos enquanto não pudesse ter um
avião de verdade.
ATÉ que, um dia, uma idéia nova me surgiu na cabeça. Uma idéia tão doida, que eu não teria
coragem de contá-la para ninguém: pensariam que eu tinha ficado completamente maluco e
me internariam num hospício. Não me veio de repente, mas aos pouquinhos, depois de
observar vários fatos miúdos que aconteciam comigo, e que fui ligando a outros até chegar a
uma conclusão.
Fiquei pensando, por exemplo, numa brincadeira que eu fazia sempre, ao me pôr de pé:
costumava puxar os cabelos para cima, como se aquilo me tornasse mais leve, ajudando a me
erguer da cadeira. E os outros achavam graça.
Tinha também a mania de fingir que me agarrava em algum apoio imaginário no ar — uma
barra, uma corda, uma argola — para me tornar mais leve ao me levantar da cama.
Pois comecei a reparar que tanto uma coisa como outra realmente me faziam mais leve, não
era apenas ilusão.
Minha mãe tinha me contado que no seu tempo de criança havia uma brincadeira muito
divertida: um balão de borracha cheio de um gás mais leve que o ar, mas bem grande, que se
prendia no ombro das pessoas e as fazia mais leves, quase não tocando o chão, e cada passo
era um salto gigantesco, como se fossem levantar vôo... Não sei se isso era invenção de
mamãe (tive a quem puxar) — o certo é que me deixou fascinado, doido de vontade de
experimentar a brincadeira.
Mas onde arranjar um balão como aquele?
Uma noite tive um sonho maravilhoso: sonhei que sabia voar. Bastava movimentar os braços,
mãos abertas ao lado do corpo fazendo círculos no ar, e eu me descolava do chão como um
passarinho, saía voando por cima das casas e pelos campos sem fim.
Durante vários dias aquele sonho não me saiu da cabeça.
Acabei cismando que poderia torná-lo realidade. Ia para o fundo do quintal e, longe da vista
dos outros, ficava horas seguidas ensaiando o meu vôo. Mexia com as mãos, sem parar, como
fizera no sonho, e nada. Eu sabia que não era uma questão de força, mas de conseguir
estabelecer, com o movimento harmonioso das mãos, um misterioso equilíbrio entre o meu
peso e o peso do ar. Como se estivesse dentro d'água e quisesse me manter à tona: qualquer
gesto mais forte ou afobado e eu me afundava.
Pois um dia, depois de muito treino, senti que começava a ficar mais leve. Ou era só
impressão? Tinha passado a fazer aqueles exercícios de calção de banho, justamente para
sentir que, sem a roupa, meu peso era menor. E naquele instante parecia que eu estava quase flutuando no ar. Experimentei dar uns passos, bem de mansinho, como se estivesse andando em cima d'água. E a sensação foi de não estar tocando o chão. Descalço, já não sentia na sola dos pés o contato áspero da terra do quintal. Por vários dias repeti a experiência. Ao fim, já sabia instintivamente os movimentos que tinha
de fazer com o corpo para começar a flutuar, como alguém que tivesse aprendido a nadar. Um
ligeiro impulso com os braços, bem devagar, levantando os cotovelos, me fazia deslizar
mansamente, como se estivesse usando patins invisíveis. Apenas não tinha força suficiente
para ganhar altura, e toda vez que eu me impacientava e fazia um movimento mais rápido,
sentia meu corpo de súbito se abater contra o solo.
Com a prática, acabei conseguindo me erguer um ou dois palmos e sair deslizando pelo quintal
durante algum tempo. Mas era pouco. Assim de pé, não podia dizer que estivesse voando. Eu
percebia que só deitado, braços abertos como as asas de um pássaro, é que chegaria a voar de
verdade. Mas quando experimentava me deitar e movimentar os braços como fazia de pé,
sentia que jamais sairia do chão. Era como querer nadar no fundo de uma piscina sem água.
Acabei me convencendo de que, para sair voando, eu teria de já estar no ar.
Como? Subindo na mangueira e me atirando lá de cima? Eu não era maluco a este ponto: o
peso do meu corpo faria com que eu me esborrachasse cá embaixo no chão. Era preciso que
tivesse como tomar algum impulso...
Foi então que me veio a solução.
Como já disse, no fundo do quintal de nossa casa havia um pequeno bambuzal. Uma das
brincadeiras que a gente fazia ali era a de se dependurarem vários meninos num dos bambus,
fazendo com que ele se entortasse até que tocassem o pé no chão. Em dado momento todos,
a um só tempo, largavam o bambu, menos o que estivesse na ponta: este continuava
dependurado e subia como um foguete, agarrando-se com todas as forças no bambu pura não
ser atirado longe. E ficava balançando de um lado para outro lá em cima, como um pêndulo,
até que o movimento parasse de todo e ele pudesse vir escorregando bambu abaixo.
Mais de uma vez eu participara daquela brincadeira. Sendo o menorzinho, e portanto o mais
leve, em geral era o que ficava mais tempo balançando, dependurado na ponta do bambu.
Só que, agora, eu não ia apenas me dependurar: ia subir com o bambu e aproveitar o impulso
para sair voando.
EVIDENTEMENTE não contei a ninguém a minha Intenção.
A princípio tudo deu certo: a subida foi sensacional. Quando a meninada largou o bambu,
esperei que ele se empinasse, e larguei também. Fui projetado para cima como uma bala de
canhão. Subi, subi, subi, vendo lá embaixo no quintal diminuírem cada vez mais as figurinhas
dos outros meninos, agitando os braços para mim, cheios de espanto e admiração.
Em pouco tempo eu podia avistar do alto não somente o telhado da minha casa entre as
árvores, como a cidade inteira com as suas ruas e praças, ônibus, bondes e automóveis
deslizando como baratinhas.
Mas tudo começou a rodar diante de meus olhos quando meu corpo, perdendo o impulso que
lhe havia dado o bambu, passou a virar cambalhotas no ar como as piruetas de um avião. Senti
que era tempo de começar a voar por mim mesmo, antes que despencasse lá de cima como
uma pedra.
Abri os braços, procurei uma posição de equilíbrio, como se fosse um pássaro, e movimentei
as mãos como tinha ensaiado. Um bando de andorinhas passou por mim em revoada, sem
tomar conhecimento de minha presença. O silêncio ali em cima era impressionante. Vi pouco
acima de mim e meio de lado um urubu planando calmamente ao sabor do vento e a me olhar,
desconfiado. Aquele bicho era capaz de me trazer azar.
— Vai embora, urubu! — gritei, mas ele nem ligou.
Tentei imitá-lo no seu vôo, quando percebi que eu estava era caindo mesmo. E cada vez com
mais velocidade, apesar de meu esforço para me manter no ar. Eu sabia que quanto mais me
agitasse, mais rápida seria a queda. No entanto, não conseguia me conter e mexia os braços e
as pernas, desesperado como alguém que dentro d'água perde as forças e começa a se afogar.
E sempre caindo. Lá embaixo o telhado das casas, as árvores, as ruas já se aproximando
velozmente.
Senti que estava perdido. Não adiantava mesmo continuar a me mexer.
Então fechei os olhos e esperei pelo pior. Meu corpo assim esticado pareceu que já não
tombava tão depressa: planava um pouquinho no ar, como o urubu, sustentado pelo vento
que estava soprando. Mas continuava caindo — em poucos segundos eu estaria me
arrebentando lá embaixo no chão.
Só me restava pedir a Deus que tivesse piedade de mim, me levasse de uma vez para o céu.
Foi quando ouvi um barulhinho no ar. Abri os olhos e vi o aeroplano voando lá longe, depois
fazendo uma volta e vindo em minha direção. O piloto parece ter me visto também, pois se
aproximava cada vez mais. Ao chegar bem perto fez um sinal com o braço. Respondi com um
gesto aflito de quem pede socorro. Ele deve ter entendido: fez uma volta e veio vindo por
detrás, para passar bem em cima de mim. Procurei planar o mais possível. braços abertos, e
quando vi que ele se emparelhava comigo, ergui os braços e me agarrei com força no eixo
entre as rodas, como havia feito o aviador nas acrobacias lá do Prado.
Não foi fácil montar no eixo e dali passar para a asa, mas acabei conseguindo. Na hora do
aperto a gente é capaz de tudo.
Por detrás dos seus óculos colados no rosto, o piloto me olhava, assombrado. Logo o avião
ganhou velocidade, rumando para o campo de pouso.
Ao fim de algum tempo, que me pareceu uma eternidade, acabamos descendo mansamente
na pista.
Nem bem o avião tinha parado na grama, meu pai chegava esbaforido num carro de praça,
para me buscar. Avisado pelos outros meninos da minha aventura, havia tomado aquele carro
de aluguel — coisa que só fazia nas grandes ocasiões.
Depois disso não voltei mais a sair do chão. Minha mãe achava que eu andava muito
magrinho, me obrigava a comer de tudo e tomar fortificante para engordar. Acabei
engordando mesmo. Não muito, mas o bastante para não conseguir mais voar.
CAPÍTULO IV
O MISTÉRIO
DA CASA ABANDONADA
MAS consegui coisa mais importante: me tornei agente secreto.
O Departamento Especial de Investigações e Espionagem Olho de Gato achava-se instalado
nos altos do prédio situado na Praça da Liberdade, número 1458, em Belo Horizonte, Minas
Gerais, Brasil, América do Sul, Hemisfério Ocidental, Terra, Universo
Ou seja: no forro da minha casa.
Era uma sociedade secreta, constituída de quatro agentes: Odnanref, Anairam, Hindemburgo e
Pastoff. Um casal de brasileiros, um alemão e um russo. Odnanref era meu nome de guerra, e
eu o chefe da organização. Anairam era Mariana, filha da dona Cacilda, a nossa vizinha da casa
ao lado. Hindemburgo, como já disse, era o cachorro policial. Ele não parecia gostar muito que
a sociedade se chamasse Olho de Gato, mas gato é que enxerga no escuro, não podíamos dar a
ela o nome de Olho de Cachorro, como o referido agente certamente pretendia. E Pastoff era
o coelho cinzento que meu pai tinha me dado para substituir a galinha Fernanda, que havia
morrido de velha. Quem o batizou assim foi o Gerson, meu irmão mais velho, afirmando que
Pastoff queria dizer coelho em russo — afirmação que desconfio não ser verdadeira. Nossos
inimigos mais próximos eram, pela ordem: a Alzira, por viver nos espionando; seu Lourenço, o
jardineiro português, que me passou uma corrida só porque fiz pipi dentro do regador; seu
Policarpo, tio da agente Anairam, que tinha dado umas palmadas na sobrinha quando a
surpreendeu mexendo nos seus guardados, por estar desconfiada de que ele pertencia a uma
organização inimiga; e o Godofredo, que me delatou quando escondi a Fernanda debaixo da
bacia, para que não a servissem ao molho pardo no almoço do Dr. Junqueira. Era talvez o
inimigo mais perigoso, pois vivia dando com a língua nos dentes (que não tinha) — uma língua
preta, só de olhar já dava nojo. Por causa dele tivemos de transferir a sede da sociedade para o
forro: Godofredo prestava mais atenção que uma coruja, lá do seu poleiro à entrada do porão,
onde a principio nos reuníamos. A qualquer coisinha disparava a tagarelar, chamando a
atenção de todo mundo com a sua falação.
Entrávamos no forro de maneira meio complicada: pelo alçapão na parte do teto que ficava
exatamente sobre a mesa da copa. Quando não havia ninguém por ali, colocávamos uma
cadeira em cima da mesa, para alcançar o forro. Depois de subir, tínhamos de recolocar a
cadeira no chão (para que ninguém suspeitasse ao vê-la ali) com a ajuda de uma corda e um
gancho que então recolhíamos. Para sair, era só nos dependurarmos nas bordas do alçapão e
saltar na mesa.
Os agentes que subiam e desciam com mais facilidade eram justamente o Hindemburgo e o
Pastoff, por serem bons de salto.
Fechada a portinhola de entrada, começávamos a reunião, sob o telhado, por entre cujas
frinchas entravam alguns fiapos de luz do sol.
Tínhamos de falar baixo e pisar de leve, para não fazer barulho no forro. Mas podíamos andar
por ele à vontade, em cima de todos os quartos da casa e até mesmo ver o que se passava lá
embaixo por alguma fresta nas tábuas. Só que não havia grande coisa a espionar, senão
alguém trocando de roupa, o que em si não tinha nada que merecesse maiores investigações.
Havíamos deslindado vários mistérios, que desafiariam a argúcia dos mais hábeis detetives e
espiões do mundo inteiro. Conseguimos descobrir quem tinha chupado os ovos no ninho do
galinheiro da casa de nossa agente Anairam: um gambá que, ao ser descoberto, sumiu para
sempre sem deixar vestígios, além de um rastro de mau cheiro. Tínhamos desmantelado uma
rede de contra-espionagem chefiada pelo Gerson. Ele era capaz de verdadeiros prodígios,
como entrar no nosso quarto pela janela do segundo andar (e jamais soube voar como eu)
para abrir meu armário e o do Toninho e ver o que tinha dentro, usando gazuas e chaves
falsas. Graças ainda às nossas investigações, descobrimos que uma nova empregada
conseguira em uma semana furtar objetos de todo mundo dentro de casa, até da própria
Alzira, sua colega de quarto. Mas nossa maior proeza seria a da casa abandonada, motivo da
reunião que eu havia convocado para aquele dia.
ANTES de mais nada, seria preciso tomar várias providências. A mais urgente delas era a
respeito da nossa linguagem cifrada, pela qual obrigatoriamente nos comunicávamos:
— Nãopão popodepemospôs fapalarpar maispais napa linpinguapá dopô pepê. Opô
Gerpersonpon sapabepê fapalarpar nepessapá linpinguapá. Hopojepê epelepê
enpentenpendeupeu tupudopô quepê fapaleipei nopô tepelepefoponepê.
Pela manhã eu tinha telefonado para a agente Anairam, convocando-a para a reunião. Em
geral, quando tínhamos assunto mais longo para falar, usávamos nosso telefone privado, feito
de um barbante passado por cima do muro e tendo em cada extremidade a parte de dentro de
uma caixa de fósforos. Usávamos então linguagem comum mesmo, que mal conseguíamos
escutar. Não dava para usar a língua do pê, como em nossas conversas no telefone de
verdade, que estavam correndo o risco de ser ouvidas e entendidas pelo Gerson.
Propus aos demais que dali por diante a nossa língua oficial passasse a ser o alemão:
— Aus, enter, ínter, ómber, úfter. Sómber vaus-mosómber faus-laus aus-sínter.
Um pouco mais complicado que a língua do pê: cada vogai tinha um som diferente. Mas
Anairam aprendeu logo. Os outros dois agentes naturalmente se limitavam a prestar atenção,
um abanando o rabo, o outro as longas orelhas, pois não falavam língua nenhuma. Mas Hindemburgo, que era alemão, parecia satisfeito porque
passaríamos a falar no seu idioma.
— Muínter-tómber bénter — disse ela. — Vómber-cénter rénter-cénter-beúfter mínter-nhaus
ménter-saus-génter sénter-crénter-taus?
Realmente, ela tinha me mandado naquele dia uma mensagem secreta, e agora estava
querendo saber se eu havia recebido. Limitara-se a atirar por cima do muro um papel em
branco enrolado numa pedra, depois que soube ser perigoso usar o telefone de nossas casas.
Escrevera a mensagem com tinta invisível, é lógico. Costumávamos usar dois processos,
dependendo da ocasião: um era escrever com a caneta molhada em xixi: bastava esquentar o
papel na chama de uma vela, que a escrita aparecia. Outro, era escrever a lápis com força num
papel colocado sobre outro bem molhado. Quando o papel secava, não se via nada escrito
nele: era preciso tornar a molhá-lo para poder ler.
Como aquele papel ainda estava meio úmido, vi logo que ela tinha usado este segundo
processo. Foi só molhá-lo de novo debaixo da torneira, e pude ler:
DE ANAIRAM PARA ODNANREF:
URGENTE INVESTIGARMOS CASA
ABANDONADA POSSÍVEL EXISTÊNCIA
TESOURO.
Ela se referia a uma misteriosa casa na Avenida João Pinheiro, onde sabíamos que não morava
ninguém havia anos. Diziam mesmo que era mal-assombrada. O imenso casarão ficava
fronteiro à rua, com uma varanda ao lado, dando para um jardim. A pintura estava
descascando nas paredes, as janelas apodrecidas e desconjuntadas, o mato tomando conta do
jardim, a hera subindo pela fachada, teias de aranha nas grades da varanda, o portão
enferrujado, morcegos vivendo nas frinchas do telhado. Íamos sempre olhá-la durante o dia,
fascinados: que haveria lá dentro? Não seria de espantar se de noite os fantasmas se
reunissem ali para celebrar o fato de já haverem morrido.
Anairam propôs que fôssemos lá naquela noite, para proceder a uma investigação completa.
Achei prudente sugerir que de noite as coisas ficavam um pouco mais difíceis, não se
enxergava nada! Melhor irmos mesmo de dia. Ela alegou que de dia nós é que corríamos o
risco de sermos vistos.
Sermos vistos por quem? Se lá não morava ninguém?
— Pénter-losómber vínter-zínter-nhosómber.
Pelos vizinhos — ela tinha razão. Respirei fundo, tomando coragem, e dei a palavra de ordem:
iríamos lá naquela noite mesmo.
NAO foi fácil sair de casa de noite. Tive de esperar todo mundo dormir, inclusive o Toninho,
que nunca teve tão pouco sono: ficou lendo na cama até tarde. Foi a minha vez de reclamar:
— Vou apagar essa luz, que estou com sono, quero dormir.
Quando me certifiquei de que não havia ninguém mais acordado, tirei o pijama, me vesti no
escuro e saí pé ante pé. Convoquei o Hindemburgo com um assobio. Ele compareceu logo,
língua de fora, todo animado. Pastoff também se juntou a nós em dois pulos e saímos os três,
para encontrarmos a agente Anairam já à nossa espera no portão de sua casa. Vestia uma capa
de chuva sobre a camisolinha, o que lhe dava um ar de espia de cinema. E fomos juntos pela
rua em direção à Avenida João Pinheiro.
Quando chegamos em frente à casa abandonada, ouvimos o sino da igreja de Lourdes dar
pausadamente doze badaladas, que ficaram vibrando no ar aterradoras: meia-noite! Hora em
que os fantasmas apareciam, saindo de seus túmulos, e o capeta andava solto na escuridão da
noite. Fazia frio e vi que a agente Anairam tremia tanto quanto eu, mas ainda assim levamos
em frente a nossa aventura.
Não foi difícil transpor o portão: um ligeiro empurrão e ele se abriu, devagar, rinchando nas
dobradiças. Fomos avançando por entre o mato do jardim. Alguma coisa deslizou junto a meus
pés — um rato, certamente, ou mesmo um lagarto. Engoli em seco e prossegui a caminhada
ao lado de minha companheira, seguido dos outros dois agentes.
Ao chegar á varanda, ordenei a ambos que ficassem ali e nos esperassem. Não convinha
entrarmos todos ao mesmo tempo. Alguém tinha de ficar de sentinela do lado de fora.
Subimos os degraus de pedra em plena escuridão e tateamos pela parede à procura da porta.
Tínhamos trazido conosco uma caixa de fósforos e uma vela, mas não era prudente acendê-la
ali: poderíamos chamar a atenção de alguém na rua, algum guarda-noturno rondando por lá.
Encontramos a porta e forçamos o trinco. Estava trancada por dentro, não houve jeito de abrir.
Era tão fraca e a madeira parecia podre, eu seria capaz de arrombá-la com um pontapé, só que
faria muito barulho. Preferimos forçar a janela que dava também para a varanda. Era só
quebrar o vidro, meter a mão e puxar o trinco.
Tirei o sapato e bati fortemente com o salto no vidro, que se espatifou num tremendo ruído.
Assustado, Hindemburgo latiu no jardim, por sua vez nos assustando tanto, que nosso
primeiro impulso foi fugir correndo.
Como não acontecesse nada, ao fim de algum tempo resolvemos continuar a nossa missão. Aberta a janela, fui o primeiro a pular. Depois ajudei Anairam a entrar
também. Só então, já dentro de casa, nos arriscamos a acender a vela.
Era uma sala grande, onde não tinha nada, a não ser poeira no chão e manchas de mofo pelas
paredes forradas de papel estampado. A chama da vela, trêmula, projetava sombras que se
mexiam, pelos cantos, ameaçadoras, enquanto avançávamos.
Em pouco vimos que ali embaixo só havia uma cozinha, onde várias baratas fugiram correndo
pelo chão de ladrilhos encardidos, um quartinho e outra sala com janelões dando para a rua.
Mais nada.
Restava subir a escada e investigar o que havia nos quartos lá em cima.
Subimos devagarinho, eu na frente, conduzindo a vela, a agente Anairam se agarrando na
minha blusa. Procurávamos não fazer barulho, mas os degraus de madeira da escada, já meio
podres, rinchavam, dando estalinhos debaixo de nossos pés.
No segundo andar, empurramos a porta do primeiro quarto no corredor e entramos. Era um
quarto grande, mas a vela não dava para ver nada, a não ser a nossa própria sombra projetada
na parede.
Foi quando, de súbito, a luz se acendeu e tudo se iluminou.
No primeiro instante ficamos deslumbrados com aquela claridade e nos voltamos para ver
quem tinha acendido a luz. Soltamos juntos um grito de pavor — parado junto à porta estava
um velho horrendo, alto, barba suja, cabelos desgrenhados, a nos olhar, mãos na cintura:
— Que é que vocês dois estão fazendo aqui? Quem são vocês?
A voz dele era rouca e nos meteu mais medo ainda. Ele avançou em nossa direção e fomos
recuando de costas, até a parede.
— Vocês merecem é uma boa surra — e o velho apanhou um pedaço de ripa no chão.
Quando já estava com o braço erguido para nos bater, vimos por detrás dele surgirem na porta
os agentes Pastoff e Hindemburgo que, alertados pelo nosso grito, tinham vindo a toda pressa
nos defender. O primeiro em três pulos se colocou na frente do velho, onde ficou
saracoteando para distrair sua atenção, enquanto o segundo de um salto se atirava em suas
costas e o derrubava.
Anairam e eu aproveitamos a confusão para fugir do quarto e despencar escada abaixo,
largando pelo caminho a vela ainda acesa. Fomos ultrapassados pelo velho, que ao ver aquele
cachorrão em cima dele sentiu mais medo do que nós.
Nem sei como conseguimos saltar tão depressa pela janela por onde havíamos entrado, e
ganhar a rua num atropelo, aos gritos de acordar o quarteirão inteiro. Quando vimos, os
outros dois agentes estavam a nosso lado, fugindo conosco. Fomos cada um para o seu lado —
Anairam para a sua casa, eu para a minha, Pastoff para sua toca no quintal, Hindemburgo para o porão onde dormia.
NO DIA seguinte ficamos quietinhos, nem ousamos nos reunir. Mas soubemos, pelas conversas
dos mais velhos, de tudo que havia acontecido. Tinha dado até notícia no jornal. A nossa
gritaria chamou a atenção dos vizinhos, que acordaram e viram de suas janelas a casa
abandonada começando a pegar fogo - a vela que deixei cair causou o incêndio. Chamaram os
bombeiros e veio também a polícia, ainda em tempo de prender o velho: era um ladrão
perigoso, que usava aquela casa para guardar objetos roubados. Um dos vizinhos chegou a
declarar aos jornais que tinha visto uns meninos e um cachorrão fugindo da casa em chamas.
Mas não se descobriu nada a nosso respeito, acharam que o vizinho estava vendo fantasmas.
Passado o perigo, alguns dias mais tarde a sociedade secreta Olho de Gato voltou a se reunir,
para avaliar a situação e estudar as próximas missões. Entramos de manhã no nosso
esconderijo e, esquecidos do tempo, ficamos horas comentando os riscos que tínhamos
enfrentado. Até Hindemburgo participou dos debates, a rosnar de alegria lá na língua dele,
pelo grande sucesso de sua atuação, salvando-nos a vida: ganhou um belo naco de carne que
roubamos da Alzira na cozinha, e Pastoff foi premiado com meia dúzia de cenouras.
Estávamos em meio às celebrações, quando ouvimos um barulhinho no canto do forro. A
agente Anairam foi até lá investigar. De repente ela soltou um berro e voltou correndo, como
se mil demônios a perseguissem
— É o gambá!
Apavorados, nos precipitamos todos para a saída no alçapão: era o gambá que havíamos
surpreendido chupando ovos no galinheiro da casa de nossa companheira. Foi abrir a
portinhola e saltamos um atrás do outro para a mesa lá embaixo.
Foi então que se deu o desastre.
Distraídos com a animada reunião, não tínhamos percebido que o tempo havia passado,
estava na hora do almoço. E a família inteira almoçava naquele instante, reunida em torno à
mesa. Pastoff caiu direto dentro da sopeira, saiu aos pulos borrifando sopa em cima de todo
mundo. Hindemburgo, grandalhão, em dois saltos ganhou o chão, não sem antes pisar nos
pratos do papai e da mamãe, espalhando comida para todo lado. Eu caí com as pernas
enganchadas no pescoço do Gerson e Anairam se estatelou de quatro no meio da mesa, uma
das mãos na travessa de arroz, a outra na de batatinhas fritas e os joelhos num pastelão de
carne. Só o gambá não pulou atrás de nós: se limitou a meter o focinho pelo alçapão, para dali
acompanhar os acontecimentos. Mas deu para sentir o fedor de sua presença.
Foi um susto tremendo, verdadeiro pandemônio. Devem ter achado que a casa vinha abaixo.
Nunca conseguiram saber direito o que havia acontecido e muito menos o que estávamos
fazendo no forro da casa. Não havia como entender as nossas confusas explicações.
E foi assim que entrou em recesso a sociedade secreta: os quatro agentes, Odnanref, Anairam,
Pastoff e Hindemburgo se recolheram cada um ao seu canto, e o Departamento Especial de
Investigações e Espionagem Olho de Gato suspendeu temporariamente as suas atividades.
CAPÍTULO V
UMA AVENTURA NA SELVA
VOLTEI então a me empolgar pelas aventuras de Tarzã ou pelas desventuras de Robinson
Crusoé. Tinha vontade de imitá-los. Era pensando em Tarzã que eu subia na mangueira, dava o
meu grito da selva e saltava de galho em galho, chegando mesmo a passar, dependurado
numa corda como se fosse um cipó, para a mangueira do vizinho, do outro lado do muro. E
como se fosse Robinson Crusoé na sua ilha deserta é que resolvi construir uma cabana no
fundo do quintal.
Primeiro finquei quatro estacas de bambu no chão, formando um quadrado. Depois ergui as
paredes, aproveitando as tábuas de uns caixotes vazios que estavam havia tempos debaixo da
escada da cozinha, sem nenhuma serventia. Para isso, usei o martelo, o serrote e outras
ferramentas de meu pai, que eu já sabia manejar com alguma habilidade. Aproveitava, é
lógico, as horas em que ele não estava em casa, pois papai não gostava que usassem as suas
ferramentas. Dizia que a gente depois largava tudo espalhado por aí.
O telhado era feito de uns galhos cruzados, sustentando pedaços de lata de querosene e
tampas de latas de biscoito Aymoré. A porta e a janela, também de madeira, tinham
dobradiças feitas de pedaços de couro de um sapato velho e se fechavam por dentro com uma
tramela: um pedacinho de pau que girava, preso por um prego.
Aos poucos foi surgindo a mobília da minha nova morada: uma mesa feita de tábua e quatro
pedaços de cabo de vassoura, um banquinho que era outra tábua em cima de dois tijolos, e a
cama, que era um saco de aniagem cheio de folhas secas em cima de um jirau improvisado.
Algumas prateleiras de papelão e cabides feitos de pregos completavam a arrumação.
Cuidei também de levar para a cabana uma boa provisão de alimentos furtados da despensa:
frutas, latas de sardinha, salame, queijo — tudo mais que pudesse comer com auxílio do meu
canivetinho, sem precisar de cozinhar.
E passava horas e horas ali dentro, sozinho na minha ilha deserta. Até parecia que ninguém
mais sabia da minha existência. Às vezes minha mãe me procurava por tudo quanto era canto
da casa, o, não me encontrando mandava a Alzira me buscar na cabana:
— Deve estar metido lá dentro, esse menino. A cozinheira batia na porta com uma força que
ameaçava jogar a cabana no chão, mas eu não abria: ficava quietinho, sem fazer barulho,
esperando que ela acabasse desistindo.
Uma noite, enfim, resolvi dormir ali. Pedir que meus pais permitissem, nem pensar: mamãe
vivia dizendo, assim que anoitecia:
— Vem pra dentro, menino, olha o sereno!
E papai não se metia; quem mandava nessas coisas era ela.
Para facilitar, pensei em confiar meu plano ao Toninho, mas achei que ele podia querer
também dormir na cabana, e ali dentro mal cabia um, quanto mais dois. Então esperei que
todos na casa adormecessem, e saí sorrateiro do quarto em direção ao quintal, levando o
travesseiro e o cobertor.
Não tive sorte: naquela noite caiu um temporal, com raios e trovoadas. A água da chuva
inundou a cabana, a ventania arrancou pedaços do telhado. Encolhido num canto, molhado
até os ossos, tive de esperar o dia clarear, debaixo daquele aguaceiro todo. Acabei pegando
uma gripe, por pouco não vira pneumonia. E recebi um castigo bem merecido: fiquei sem
sobremesa uma semana.
Meu pai, curioso, no dia seguinte foi ao quintal apreciar a cabana. Elogiou o meu trabalho, mas
fez vários reparos: isso aqui você não pregou direito; é lógico que tinha de chover dentro, o
telhado não tem inclinação; devia ter cavado um rego ao redor, para a água não entrar por
baixo da parede.
— Você tem jeito. Mas precisa de aprender umas coisas.
E disse para minha mãe, na hora do almoço:
— Acho que o escotismo é que vai ser bom para esse menino.
TONINHO já era escoteiro, mas eu ainda não tinha idade senão para ser lobinho. Ainda assim,
meu irmão me levou para a associação e me alistou.
Em pouco tempo, passei a levar mais que a sério o escotismo. Não tanto pela parte moral —
embora não deixasse de ser interessante amar a Deus sobre todas as coisas, ter uma só
palavra, fazer uma boa ação todos os dias, ser limpo de corpo e alma, amar os animais e as
plantas, respeitar o bem alheio, ser cortês e leal, e outras obrigações dos mandamentos do
escoteiro, que a gente jurava cumprir. O que me atraía mesmo era a parte prática e as
distrações: transmitir mensagem à distância pelo código Morse, com o auxílio de um apito ou
de uma lanterna (logo consegui decorar o alfabeto), ou por semáfora, com duas bandeiras,
como fazem os marinheiros; aprender a dar várias espécies diferentes de nós; acender uma
fogueira com apenas um pau de fósforo ou fazer fogo sem fósforo algum; armar uma barraca;
orientar-me pelas estrelas; tocar tambor; seguir uma pista em pleno mato — e mil outras coisas próprias dos índios e dos exploradores
do oeste.
Duas vezes por semana lá ia eu para a reunião na sede da associação, todo orgulhoso no meu
uniforme de lobinho.
E chegou enfim o dia de realizar o meu grande sonho: participar de um acampamento.
Éramos uns trinta, e eu o único lobinho. Toninho também foi. Ele não devia ter nem doze anos,
mas já era monitor da patrulha do Lobo, havia passado na Primeira Classe e conquistado várias
especialidades, cujos distintivos ostentava na manga arregaçada da blusa caqui. Nem por isso
parecia pretensioso ou arrogante. Pelo contrário: procurava ser humilde e camarada, um
grande companheiro dos demais escoteiros, mesmo os menores como eu. Não era só por ser
meu irmão: eu o considerava o meu melhor amigo e ele acabou se tornando para mim uma
espécie de instrutor. Era quem me ensinava as coisas. Com ele é que aprendi quase tudo do
escotismo, inclusive sobre acampamentos. Agora ia pôr em prática o que aprendera.
Fomos de trem, numa enorme algazarra, entre cantorias e brincadeiras. Descemos em
Itabirito, de onde seguimos a pé até o local onde íamos acampar, fora da cidade e perto de
uma floresta.
Enquanto os demais escoteiros cumpriam cada um sua missão armando o acampamento, a
patrulha do Lobo, chefiada pelo Toninho, foi encarregada de catar galhos secos na mata, que
servissem de lenha para cozinhar e para o Fogo do Conselho, depois do jantar. Fui com os oito
escoteiros, pois ficara mais ou menos agregado a eles, adotado por aquela patrulha como uma
espécie de mascote.
Usando suas machadinhas e facões, os escoteiros se espalharam entre as árvores, cortando
galhos aqui e ali. Também eu levava, com orgulho, dependurada ao cinto, a minha faca de
campanha. Mas não precisei de usá-la, pois, de acordo com as instruções do comandante da
patrulha, minha missão se limitava a recolher do chão todo graveto que encontrasse. Distraído com a tarefa, não reparei que me distanciava dos outros, embrenhando-me cada vez
mais no meio do mato. Quando percebi que já não mais os via, nem mesmo ouvia suas vozes,
procurei regressar, mas não sabia por onde, tantas eram as voltas que havia dado. O mato era
denso ao redor, impedindo que eu visse qualquer coisa à distância de uns poucos metros.
Mesmo a luz do dia mal chegava onde eu tinha ido parar, impedida pela copa das árvores que
se fechavam como um telhado sobre minha cabeça. E o pior é que já começava a anoitecer.
Procurei prestar atenção, aguçando os ouvidos, para ver se escutava alguma coisa. Realmente
deu para captar, ao longe, uns farrapos de conversas e risadas cada vez mais fracas, à medida
que se afastavam, eu não conseguia distinguir em que direção. Gritei, gritei, mas não deviam
ter me ouvido, pois fiquei esperando um tempão e ninguém apareceu. Senti vontade de
chorar, mas resisti: um escoteiro não chora.
Dava para perceber em que lado o sol se afundava no horizonte, pois seus últimos raios
conseguiam varar a parede de árvores, deixando no ar uma cortina de luz. Eu sabia me
orientar pelo sol. Bastava virar a esquerda para o poente, e tinha à minha frente o norte, às
costas o sul e â direita o leste. Mas de que adiantava? Eu não sabia se o nosso acampamento
estava na direção do norte, do sul, do leste ou do oeste. Distraído em olhar o chão à procura
de gravetos, eu não havia prestado atenção a nada, e muito menos por onde ia. O que era
imperdoável num escoteiro, que deve estar sempre alerta.
Agora eu descobria que estava completamente perdido, e em breve seria noite. Sabia que
tinha ido parar bem longe do acampamento. Devia ter me afastado dos outros uma longa
distância, andando sem rumo pela floresta. Era inútil tentar voltar. Eu ia acabar me perdendo
de vez, e quando viessem à minha procura, jamais me achariam.
DECIDI não entrar em pânico e encarar com bom humor a minha situação: o escoteiro é alegre
e sorri nas dificuldades. Quando afinal eu voltasse ao acampamento, possivelmente daríamos
boas risadas pelo que havia acontecido. Eu podia até inventar que me escondera de
brincadeira, para passar um susto nos companheiros. A verdade é que temia receber algum
castigo, pois deixara de cumprir a instrução que havia recebido, de não me afastar muito dos
meus companheiros. Só que eu não poderia mentir: o escoteiro tem uma só palavra, sua honra
vale mais que a própria vida.
E era a minha própria vida que estava em jogo: pelo jeito, eu teria de passar a noite em plena
mata, cercado de perigo por todos os lados.
Procurei fazer um levantamento dos recursos com que eu contava para sobreviver. Havia
deixado no acampamento a mochila com mudas de roupa, cobertor, escova de dentes, e tudo
mais. Mas trazia comigo, dependuradas no cinto ou dentro dos bolsos, várias peças do
equipamento de um escoteiro, e que me seriam valiosas na situação em que me encontrava: a
faca metida na bainha de couro; o rolo de corda; o canivete (não o vermelhinho, mas outro,
dos grandes, marca Solingem, que meu pai me havia dado no Natal, com uma porção de
lâminas, uma pequena lente, serras e até um garfo e uma colher); o cantil cheio d'água; a
marmita portátil; a caixinha de primeiros socorros, cruz vermelha na tampa, contendo
algodão, esparadrapo, um vidrinho de iodo, outro de álcool e uns comprimidos para dor de
barriga e resfriado; uma cadernetinha de notas e um lápis. Por azar meu, só não trouxera o
apito, que agora serviria para chamar facilmente a atenção dos meus companheiros, com SOS
em Morse.
Encontrei também no bolso um tablete de chocolate Gardano e um pacote de pastilhas de
hortelã que havia comprado na estação de Belo Horizonte, antes de tomar o trem. Como
estivesse sentindo fome, comi um pedacinho do chocolate e chupei uma pastilha de
sobremesa. Era preciso tomar cuidado, economizar água e aquela ração de alimento, como
fazem os náufragos. Aquilo talvez tivesse de durar muito tempo, até que eu regressasse à
civilização.
De repente ouvi um ruído a poucos passos.
Subi com a rapidez de um esquilo ao galho mais alto de uma árvore, e só quando me senti a
salvo, enganchado numa forquilha, pude olhar para baixo e ver o que me havia assustado: um
bicho esquisito, todo riscado nas costas, de rabo curto e focinho comprido, que foi passando
calmamente e logo desapareceu. Concluí que devia ser um filhote de anta, ou tapir, que já
tinha aprendido a reconhecer: o Tapir de Prata era a mais alta condecoração que um escoteiro
podia receber.
Achei prudente continuar ali em cima mesmo, onde os perigos eram menores: só as cobras e
as onças, entre os animais ferozes, eram capazes de subir em árvores. Ao que eu soubesse,
naquela mata não devia haver nem uma coisa nem outra, porque do contrário o local do
acampamento não teria sido escolhido tão perto dela.
Para não cair durante o sono, amarrei com a cordinha o meu corpo pela cintura no tronco da
árvore, fazendo para isto uma volta-de-fiel. Vi num galho de outra árvore os olhos acesos de
uma coruja me observando. Se tinha coisa no mundo de que eu não gostava era coruja. Para
mim era bicho de mau agouro. Mas resolvi não acreditar em azar dali por diante: se a coruja
não estivesse gostando da presença daquele estranho ali, azar dela: os incomodados que se
retirem.
Em pouco tempo passei a escutar uma verdadeira orquestra dos mais estranhos sons: uivos, assobios, latidos e até mesmo gemidos. A própria coruja parecia
assustada, e soltava um pio sinistro de arrepiar de medo. A certa altura varou a escuridão uma
espécie de gargalhada que fez meu corpo gelar. Cheguei a fazer o nome-do-padre, pedindo a
Deus que me descobrissem o mais depressa possível. E comecei a assobiar tudo quanto é
música que eu conhecia, para espantar o medo.
Mesmo com aquela zoeira toda nos meus ouvidos, fui aos poucos sendo dominado pelo
cansaço e acabei adormecendo.
QUANDO abri os olhos, havia clareado. O sol subia no horizonte. Assim, á luz do dia, a mata
não parecia tão assustadora. Pelo contrário: tudo era tranqüilo e sem mistério. Vi a um palmo
do meu nariz, pousado no galho onde eu descansava a cabeça, um passarinho preto de barriga
amarela a me olhar com curiosidade, a cabecinha torta para um lado. Depois ele me virou as
costas e foi pulando pelo galho afora até a ponta, de onde levantou vôo.
Eu ouvia na mata uma cantoria doida de passarinhos, formando um só ruído, contínuo e
ensurdecedor. Desamarrei-me da árvore, enrolei a corda, e depois de dependurá-la no cinto,
desci com dificuldade até o chão. A posição forçada de dormir abraçado ao tronco havia
deixado meu corpo doído como se eu tivesse levado uma surra.
Dei alguns passos para desenferrujar as pernas. Ao olhar para o chão, descobri no meio do
capim um ninho com seis ovinhos. Deviam ser de co-dorna. Guardei com cuidado todos eles
nos bolsos da blusa, três de cada lado: ainda dariam um bom almoço.
Estava morto de fome e de sede. Molhei o rosto para espantar o resto de sono, e tomei um
pouquinho de água, que estava com um gosto meio choco, como toda água de cantil. Mas me
matou a sede. Comi mais um pedacinho do chocolate, que havia amolecido com o calor do meu corpo: amassado, colava-se no papel
prateado, lambuzando-me os dedos. Mas me matou a fome. E chupei uma pastilha de hortelã,
enquanto pensava o que faria agora.
Concluí que era inútil ficar ali à espera. Acabaria mais velho que Robinson Crusoé na sua ilha,
antes que me encontrassem. Resolvi ir andando, e escolhi a direção do sol, porque, me
lembrava agora, tínhamos entrado na mata dando as costas para ele. Mais tarde iria descobrir
que era justamente o contrário que eu deveria fazer, pois estava me afastando cada vez mais
do acampamento: tinha entrado na mata de tarde, e agora era de manhã, o sol estava do
outro lado.
Para poder avançar, eu precisava às vezes abrir caminho no mato com a faca: arbustos, cipós e
galhos das árvores se entrelaçavam, formando uma verdadeira rede. Mas fui conseguindo
seguir em frente, até chegar a uma pequena clareira, onde me sentei numa pedra para
descansar.
Enxuguei o suor do rosto, tomei mais um gole d'água, e estava pensando se comia ou não
comia outro pedacinho do chocolate, quando ouvi uma espécie de assobio bem baixinho,
perto de mim. Olhei para o lado e vi, meio erguida a dois palmos de minha cara, a cabeça de
uma cobra enorme, a lingüinha entrando e saindo, pronta para dar o bote.
Fiquei paralisado de pavor, a olhá-la também. Mas não perdi a calma: tirei devagarinho a corda
da cintura, armei um laço fazendo um lais-de-guia e segurei-a no ar com as duas mãos,
esperando o bote. Assim que a cobra avançou a cabeça, fui mais rápido: joguei o laço sobre ela
e apertei com toda força. Depois fiquei de pé e comecei a rodar a corda com violência sobre a
cabeça, a cobra de mais de um metro dependurada girando no ar, já estrangulada, a boca
aberta... Atirei-a no chão e acabei de matá-la, esmigalhando a cabeça com a pedra onde
minutos antes estava sentado. Enxuguei o suor do rosto, suspirando aliviado, me deu até
vontade de soltar o grito de vitória do Tarzã.
Depois de tornar a enrolar a corda e dependurá-la na cintura, fui-me embora dali.
O CAMINHO aberto a facão pela mata poderia indicar aos meus companheiros por onde eu
tinha seguido. Mas dali por diante, como a vegetação já não era tão cerrada, fui deixando os
sinais de pista de vinte em vinte passos. Uma seta riscada no chão ou na casca de uma árvore,
ou feita de pedrinhas e gravetos, indicando o caminho a seguir. Um x, indicando o caminho a
evitar. Se saltava um pedregulho, um buraco ou um tronco caído, desenhava uma seta atrás de
outra com dois risquinhos entre elas, o que queria dizer: salte o obstáculo. O sinal de perigo,
que era um triângulo, não tinha como deixar: havia perigo por todo lado. E o corpo da cobra
morta na clareira, que eles haviam de encontrar, era prova disso.
Quando vi por entre as árvores que o sol estava no alto do céu, decidi parar. Meio-dia — era
hora do almoço. Me lembrei dos ovos de codorna, verifiquei com pena que um deles havia
quebrado: meus dedos saíram do bolso da blusa lambuzados de gema e clara. Mas restavam
cinco, e resolvi cozinhá-los.
Para isso, armei uma fogueirinha de gravetos, entre duas pedras grandes, pus um pouco de
água do cantil na tampa da marmita com os ovinhos dentro e apoiei-a nas pedras. Depois
fiquei longos minutos a tentar fazer fogo na ponta de um pedacinho de papel da minha
caderneta, concentrando sobre ele o calor de um raio de sol através da lente do meu canivete.
Pude enfim ver sair do papel uma fumacinha, depois uma chama, que enfiei debaixo dos
gravetos, e logo um foguinho fazia ferver a água na tampa da marmita, cozinhando o meu
almoço. Descasquei com cuidado os ovinhos e comi um por um. Estavam deliciosos. Só não
comi a casca porque enganei a fome com o resto do chocolate. Como já estivesse
praticamente no fim, tive de lamber o papel prateado. Mais uma pastilha de hortelã, e estava
finda a minha refeição.
Antes de apagar o fogo, tive uma idéia que logo pus em prática. Joguei nas chamas algumas
folhas verdes, que começaram a fazer subir ao céu um denso rolo de fumaça. Então tirei a
blusa, cobrindo com ela a fumaça e deixando escapar um pouquinho de cada vez, como fazem
os índios, de maneira que subissem no ar três pontos, três traços e três pontos, que era o sinal
de SOS em código Morse. Lá do acampamento os escoteiros certamente veriam no céu o meu
pedido de socorro. Depois apaguei o fogo e segui em frente.
O chocolate me deu sede e descobri, desolado, que não tinha mais que um gole de água no
cantil. Outra imperdoável distração para um escoteiro: havia apagado o fogo com a água da
tampa da marmita, em vez de despejá-la de volta no cantil. Tinha pensado que ela não serviria
para beber, porque estava muito quente... Nunca me senti tão burro, ao descobrir a bobagem
que havia feito.
Mas Deus estava mesmo me protegendo: a mata foi rareando à medida que eu avançava, e
terminou num rio largo e caudaloso. Água é que não ia mais me faltar. E na outra margem
avistei um milharal cheio de espigas... Ali estava o meu jantar! Já tinha pensado em me valer
de raízes e frutos silvestres para matar a fome, mas temia que fossem venenosos.
Era preciso atravessar aquele rio, e só mesmo a nado.
TIREI toda a roupa, aproveitando para tomar um banho refrescante, e me distraí catando
todos os carrapatos que encontrei no corpo. Depois fiz com roupas, sapatos e tudo mais uma
trouxinha, que amarrei na cabeça com a corda, e fui nadando bem devagarinho para que ela
não se molhasse. A correnteza me arrastava rio abaixo, mas ainda assim eu ia conseguindo atravessar, e até era bom, pois me aproximava do milharal.
Quando ganhei a outra margem, depois de descansar um pouco e vestir a roupa, apanhei duas
espigas, que descasquei e meti na marmita com água do rio. Usei para cozinhá-las o mesmo
processo que tinha usado com os ovinhos de codorna. Só que desta vez não havia mais sol,
tive de empregar o processo dos índios, que era bem mais difícil: rolar um pauzinho entre as
palmas das mãos, de maneira que a ponta se esfregasse noutro pauzinho até sair fogo.
Desta vez me lembrei de jogar de volta a água no cantil. Quando esfriasse, serviria para beber,
pois, além do mais, tinha sido fervida e estava livre dos micróbios.
Só então me ocorreu que eu não deixara sinal de pista no outro lado do rio. Meus
companheiros, se estivessem me seguindo, não saberiam que eu o havia atravessado.
Como já estivesse escuro, fiquei por ali mesmo, no milharal, onde não tinha mais perigo: era
plantação feita por mão de homem, que denunciava haver civilização por perto. Fiz uma cama
de palhas de milho e dormi, depois de me regalar com as duas espigas que havia cozinhado e
de beber a água do cantil, que já estava fria e gostosa.
De manhã acordei com o sol na minha cara. Depois de lavar o rosto no rio e chupar uma
pastilha de hortelã, fui andando ao longo da margem, até encontrar o que procurava: uma
casinha de lavradores.
Era um casal de jecas que não entenderam nada do que eu contava, como se eu fosse um
bicho raro surgido de repente na frente deles. Mas acabaram me dando um pedaço de broa de
milho e falando numa estrada que passava ali perto. A meu pedido, me ensinaram como
chegar até lá. Agradeci, me despedi deles e parti.
Achei a estrada, que era de terra, mas muito melhor andar nela que no meio do mato. Logo
passou um caminhão e pedi uma carona. O motorista, um preto muito bonzinho, me deu um
pedaço de rapadura e ouviu com admiração a minha história, enquanto seguíamos em direção
a Itabirito, levantando poeira. Perguntou na estação onde era o acampamento dos escoteiros
e fez questão de me levar até lá.
Fui recebido e aclamado como um herói, em vez de ser castigado como esperava: disseram
que aquilo poderia acontecer com qualquer um. Fiquei sabendo então a aflição que meu
desaparecimento tinha causado. A tropa inteira passou aqueles dois dias à minha procura e
ainda havia gente me procurando. A patrulha do Lobo, comandada pelo Toninho, havia
encontrado a cobra que eu matara e visto no céu os meus sinais de fumaça. Seguiram as
marcas que eu fora deixando pelo caminho e ao chegar ao rio, concluíram, inconsoláveis, que
eu havia morrido afogado tentando atravessá-lo.
Meu irmão ficou desarvorado. Quando mais tarde nos reencontramos, em meio à alegria
geral, decidimos não contar nada em casa, para não afligir nossos pais. Mas, como sempre
acontece, eles acabaram sabendo, e papai achava graça, pedia que eu narrasse a façanha para
seus amigos.
Naquela noite, depois de um excelente jantar, durante o Fogo do Conselho tive de contar com
detalhes a minha aventura. Todos se admiraram e os chefes, impressionados, balançavam a
cabeça dizendo que se tudo aquilo que eu dizia fosse verdade, então eu merecia uma
condecoração, talvez mesmo o Tapir de Prata.
E era tudo verdade — juro que só acrescentei uma mentirinha: disse que não tinha tido medo
da onça que me fez subir na árvore.
CAPÍTULO VI
O VALENTÃO DA MINHA ESCOLA
DEPOIS disso tive de enfrentar outra espécie de perigo: o de levar uma surra do valentão da
minha escola.
O nome dele eu não me lembro, mas todo mundo na classe o chamava de Birica. Era pelo
menos uns dois anos mais velho que o resto da turma.
A verdade é que os colegas tinham medo dele. Birica falava e os outros baixavam as orelhas.
Eu mais do que todos, pois era dos menores.
Vai um dia o Birica resolve implicar comigo. Ele e outro menino, conhecido como Jacaré. Não
que o Jacaré fosse forte feito o Birica: era mais ou menos do meu tamanho. Tinha o queixo
para a frente, de aparar goteira, e quando abria a boca parecia um jacaré — daí o apelido.
Deste eu me lembro o nome: Sinfrônio. Por isso mesmo ele preferia ser chamado de Jacaré.
Pois o Jacaré, de quem ninguém gostava (tinha fama de ladrão, furtava tudo que a gente
esquecesse na carteira), andava sempre adulando o Birica, e acabou querendo bancar também
o valentão. Do Jacaré ninguém tinha medo, mas o Birica havia passado a protegê-lo, e ai de
quem se metesse com ele! Um dia o Tininho, só porque deu uma sardinha no Jacaré, levou um
tostão do Birica que deu com ele na enfermaria, ficou sem poder andar direito uma semana.
Mas não contou para a diretora quem o tinha machucado. Era essa a lei entre nós: ninguém
entregava ninguém. E além do mais aquilo era coisa à toa, vivíamos dando sardinha, tostão,
cacholeta e coque uns nos outros.
Para quem não sabe: sardinha é uma chicotada de raspão, com o dedo indicador, em quem
quer que ouse arrebitar o traseiro. Costuma doer de verdade, quando pega de jeito. Tostão é
uma joelhada de lado na coxa da vítima, também dói muito. Cacholeta é uma pancada na
cabeça de um infeliz, com as mãos presas uma na outra, depois de soprar entre elas como a
enchê-las de vento. Costuma até tontear. O coque, ou cascudo, é a mesma coisa, só que com
uma só mão.
Havia outras brincadeiras perversas ou mesmo perigosas, como a cama de gato: enquanto um
ficava de quatro atrás do distraído, outro o empurrava pela frente, fazendo com que tropeçasse e caísse estatelado de costas no chão. Houve mais de uma
cabeça quebrada em conseqüência dessa gracinha.
Numa das brincadeiras, nunca cheguei a saber onde estava a graça: um dos meninos estendia
firmemente dois dedos da mão direita (o fura-bolos e o pai-de-todos), para que outro menino,
com os mesmos dedos, desferisse neles uma pancada com toda força; passava então a ser a
vez do outro, que fazia o mesmo; ao fim de alguns minutos dessa distração idiota, estavam
ambos com os dedos vermelhos e inchados, latejando de dor. Para quê? Para nada.
Algumas eram brincadeiras inofensivas, como a gata parida: dois meninos, sentados em cada
extremidade do banco, iam apertando os do meio até que não houvesse mais espaço para
ninguém ficar sentado entre eles e, um a um, fossem espirrando para fora.
De outras brincadeiras, a vítima era a própria professora. Como dona Risoleta, por exemplo,
que dava aula de religião.
MAGRICELA como a Olívia Palito, mulher do Popeye, parecia um galho seco dentro do vestido
escuro. Era antipática e ranzinza. Usava óculos de lentes grossas: não enxergava direito, vivia
confundindo um aluno com outro.
A aula de religião não contava ponto nem influía na nossa média, mas a diretora nos obrigava
a freqüentar.
Um dia apareceu uma barata na sala de aula. Descobrimos então que dona Risoleta tinha
verdadeiro horror de baratas: soltou um grito, apontou a bichinha com o dedo trêmulo e subiu
na cadeira, pedindo que matássemos. Era uma barata grande, daquelas cascudas, de salto alto
A classe inteira se mobilizou para matá-la. Foi aquele alvoroço: empurrões, cotoveladas,
pontapés, risos e gritaria, todos querendo atingi-la primeiro. E a coitada feito barata tonta,
escapando por entre nossas violentas patadas no chão. Até que, de repente, tive a sorte de dar
com ela passando a correr entre meus pés — esmigalhei-a numa pisada só.
Fui aclamado como herói, vejam só: herói por ter matado uma barata. Até dona Risoleta me
agradeceu, trêmula, descendo da cadeira e me dando um beijo na testa. Esse beijo a turma
não me perdoou, durante muito tempo fui vítima da maior gozação: diziam que dona Risoleta
estava querendo me namorar.
Deste episódio nasceu uma brincadeira que passamos a fazer em toda aula de religião, duas
vezes por semana. Alguém trazia uma barata viva dentro de uma caixa de fósforos vazia, para
soltar na saia de aula entre as carteiras, até que um aluno denunciasse a sua presença. Quando
não era a dona Risoleta que soltava um gritinho:
— Uma barata!
Às vezes mais de um menino trazia de casa para soltar na sala a sua barata dentro da caixa de
fósforos ou de uma latinha. Tínhamos de combinar antes, pois se aparecessem muitas de uma
vez, dona Risoleta acabava desconfiando.
Um dia ela foi reclamar providências da diretora, dizendo que o prédio era velho, estava
precisando de uma limpeza em regra, vivia cheio de baratas. Naquele tempo não havia
dedetização, de modo que a diretora não tomou providência nenhuma, nunca tinha visto
barata na escola, aquilo eram fricotes da dona Risoleta.
E a coisa ficou por isso mesmo, de vez em quando aparecendo uma baratinha, para alegrar a
aula de religião. Houve uma que subiu pela perna da professora e foi se esconder debaixo da
sua saia. A mulher deu um pulo de três metros de altura, se sacudindo toda, aos berros, como
se estivesse possuída do demônio, por pouco não se atirou pela janela.
Até que o Dico um dia esqueceu na carteira uma caixa de fósforos com a barata dentro. Sem
saber para que diabo aquele aluno havia de ter trazido fósforos de casa, se todos nós éramos
crianças, não fumávamos, dona Risoleta, curiosa, abriu a caixa. A barata saltou em sua cara
num vôo aflito, largando pedaços de asa no ar, e se refugiou nos seus cabelos. A coitada só
faltou desmaiar de susto. Saiu correndo feito doida com barata e tudo e foi nos denunciar à
diretora.
O Dico acabou suspenso por uma semana, como responsável por todas as baratas que já
tinham aparecido. Com isso, ficou sob ameaça de perder o ano, por falta de freqüência.
Em solidariedade a ele, resolvemos fazer greve, matando as aulas de religião.
Foi quando alguém teve idéia melhor para nos vingarmos:
— Vamos trazer para a sala outra coisa.
— Uma lagartixa — sugeriu um.
— Um rato — sugeriu outro.
— Um sapo — sugeriu um terceiro.
Concluímos que lagartixa não fazia mal a ninguém, era capaz de não assustar dona Risoleta. A
menos que jogássemos uma pelo pescoço dela abaixo, por dentro do vestido — e todos riam,
imaginando a cena. Durante o recreio as conversas e conspirações fervilhavam. Como e onde
conseguir apanhar um rato vivo e trazê-lo para a escola sem que ninguém visse? Acabamos
preferindo a idéia do sapo, de que estava cheio o córrego do Leitão, ali perto da escola. E no
próprio lago da Praça da Liberdade, onde eu morava, tinha vários sapinhos, a questão era
conseguir pegar um.
Mas a meninada era ativa: no dia seguinte mesmo o Tição, um crioulinho de pele brilhante de
tão preta, trouxe, presa com um barbante, uma perereca verde que era uma beleza. Todo mundo se juntou, querendo ver:
— Mostra ela para nós, Tição.
— Onde é que você pegou?
O negrinho ria, os dentes muito brancos:
— Lá perto de casa tem uma porção.
E punha a perereca na palma da mão, para que todos vissem. Ela ficava ali, encolhida,
inchando e desinchando a barriga, olhos arregalados. De repente, como se fosse de mola, dava
um salto no ar em direção à cara de um. Todos se espalhavam, assustados:
— Cuidado, que se ela mija no seu olho você fica cego.
— É só sapo que faz isso. Perereca não mija não.
Se não fosse o Tição conter com mão firme o barbante que a prendia pela cintura, ninguém
segurava a perereca. E ele a guardava no bolso do uniforme, onde ela ficava se mexendo.
A idéia era botá-la dentro da bolsa que dona Risoleta deixava em cima da mesa, enquanto
dava aula. Num momento em que ela estava de costas, escrevendo a lição no quadro-negro, o
próprio Tição realizou a façanha: foi até lá com passo macio de gato, abriu a bolsa, desatou o
barbante, jogou a perereca dentro e tornou a fechar, voltando de mansinho para a sua
carteira. Na vista de todo mundo, menos da professora: tivemos de fazer força para conter o
riso.
Dona Risoleta não abriu mais a bolsa até o fim da aula. Para não ficarmos sem saber o que
aconteceria, confiamos a dois colegas a missão de segui-la de maneira disfarçada.
Não precisaram ir muito longe. No dia seguinte ouvíamos deles, na hora do recreio, entre
gargalhadas, o que havia acontecido. No bonde a caminho de casa viram quando ela abriu a
bolsa para tirar o dinheiro e pagar ao condutor. O que saiu foi uma perereca, a pular adoidada
sobre a cabeça dos passageiros. Um pandemônio: alguns até saltaram do bonde andando, a
começar pelo próprio condutor.
Naquele mesmo dia dona Risoleta comunicou à diretora que não daria mais aula para nós.
E HAVIA a aula de música. Era também facultativa, mas íamos todos de bom grado, por ser
muito divertida, pela bagunça que fazíamos. Quem ensinava era o seu Asdrúbal, o único
professor homem. Tinha uma careca brilhante, uma cara de lua e um sorriso bom. A voz era de
barítono. Constava que cantava ópera, já se havia apresentado no Teatro Municipal. Com os
bracinhos curtos, balançando o corpo roliço de João-Teimoso, regia o canto da molecada:
Viva o sol
Do céu de nossa terra
Vem surgindo
Atrás da linda serra.
Dividia a turma em grupos, conforme o tom de voz, e cada grupo começava a cantar num
momento diferente, para compor um coro de várias vozes desencontradas. O que terminava
sempre em algazarra, pois fazíamos questão, para desespero dele, de cantar tudo errado,
entrando fora de hora e de compasso.
Seu Asdrúbal se sentava no piano, de costas para nós, tentando impor alguma afinação ao
nosso coro de miados de gato. O aluno mais perto da porta se levantava, sorrateiro, e
escapulia, fechando-a atrás de si, enquanto outro tomava o seu lugar. O professor se voltava
para fiscalizar a turma, que fingia levar a sério a cantoria. E não dava por falta do fujão, e de
outro, e mais outro, e outro ainda... À medida que olhava, ia ficando intrigado, estranhando
alguma coisa, sem chegar a perceber que o número de alunos era cada vez menor. Até que,
dos trinta, restavam apenas uns doze, e onze, dez... Nem assim o homem, distraído lá com a
sua música, dava pela coisa. Até o dia em que sobraram apenas seis e tão logo seu Asdrúbal se
voltou para o piano, escaparam todos de uma vez, em debandada silenciosa, porta afora,
deixando a sala vazia.
Havia também uma brincadeira, que era botar rabo nas professoras.
Brincadeira perigosa, que às vezes acabava mal. Era um rabo de papel, podia ser de tiras de
jornal ou mesmo de pano, como os dos papagaios que empinávamos. Bastava amarrá-lo num
alfinete torto como um anzol e dependurá-lo com delicadeza na parte de trás da saia, quando
a professora estivesse de costas.
Um dia o menino escolhido para realizar a proeza foi um caolhinho de nome Noraldino, que
ficava uma fera quando o chamávamos de Zarolho. Pois o Zarolho, talvez por não enxergar
direito, deu foi uma boa alfinetada no traseiro da dona Zelma, professora de desenho, uma
gorducha, a quem chamávamos de dona Zebra, por ser muito brava e viver dando reguada na
mão da gente quando desenhávamos. Dona Zebra soltou um relincho mesmo de zebra e se
virou, desferindo um tapa na cara do Zarolho, que no impulso saiu da sala para fora catando
cavaco e nunca mais voltou, pois no mesmo dia foi expulso da escola.
DE TAIS brincadeiras o Birica não participava. Dizia que eram coisas de criança, ele tinha mais o
que fazer. Na verdade a sua preocupação era com o que havia de malicioso ou imoral na
escola. Não vou dizer que fosse dele tudo o que aparecia escrito ou desenhado na parede das
privadas, mas era quem procurava iniciar os menores na prática daquilo que os desenhos ou
escritos representavam.
Até que um dia resolveu implicar comigo.
Tínhamos um colega, o Tininho — acho que já falei nele. O tal que levou o tostão do Birica. O
Tininho, o Dico (que foi suspenso por causa da barata) e eu éramos muito amigos. Todo dia
voltávamos juntos da escola e nos separávamos na esquina da praça, no alto da Avenida João
Pinheiro. Tininho ia para um lado, eu para outro e o Dico seguia em frente. Na hora que cada
um tomava seu rumo, nossa despedida era muito tumultuada, pois estávamos jogando "dorme
com essa", ou seja, um tapinha, onde quer que acertasse, que cada um se empenhava em ser
o último a dar:
— Dorme com essa! — dizia um, encostando a mão no outro.
— Dorme com essa! — reagia o outro, devolvendo o gesto.
Ganhava quem fosse mais rápido, como no duelo entre o mocinho e o bandido. E era aquela
correria rua afora, um atrás do outro, para revidar.
Sendo três, a situação se complicava: às vezes o perseguidor de um passava a ser perseguido
pelo outro, e este pelo primeiro: ficávamos horas nessa brincadeira, e mesmo chegando tarde
em casa e ganhando pito, não desistíamos: era uma questão de honra não "dormir com essa".
Naquele dia, o Tininho disse para o Dico, na hora do recreio, se vangloriando:
— Você ontem dormiu com essa.
— Hoje quem vai dormir é você — retrucou o Dico.
O Jacaré, que ouvia a conversa, meteu o bedelho sem ser chamado, perguntando com ar de
deboche:
— Que conversa de fresco é essa?
O Tininho, que não gostava dele, como aliás todo mundo, ficou ofendido por ter sido chamado
de fresco e respondeu mandando o nome da mãe. O Jacaré avançou contra ele. Dico logo
saltou entre os dois para impedir:
— Covardia, ele é menor do que você.
— Xingou minha mãe.
— Então bate em mim primeiro.
— Vem no braço se você ê homem — e Jacaré olhou ao redor, já procurando o Birica.
Coloquei-me entre os dois e cuspi no chão, como mandava o código:
— Quem for homem pisa aqui primeiro. Dico foi o primeiro a pisar no cuspe. Mas o
Tininho, enraivecido, não queria saber daquilo:
— Deixa ele comigo, Dico! Eu quebro a cara dele! — e, pequenino diante do outro, ainda assim
tentava acertar com um soco a queixada do Jacaré. O que me deixou na maior admiração, pois
o Tininho, bem menor do que eu, demonstrava muito mais coragem: no fundo, eu tinha feito
corpo mole e deixado o Dico passar à frente para defendê-lo, pois não estava com a menor
vontade de brigar com o Jacaré.
Foi quando se ouviu uma voz atrás de nós:
— Que é que está acontecendo aí?
Era o Birica, abrindo caminho entre a meninada que se juntara ao redor, para apreciar a briga.
Todos, reverentes, o deixaram se aproximar. Mãos na cintura, ele se colocou na minha frente:
— Provocando briga aí, seu covarde?
Mais tarde eu não saberia explicar como pôde acontecer o que se passou então. Violência não
era comigo. Preferia resolver as coisas com calma, pois quando a gente perde a cabeça acaba
fazendo bobagem e depois se arrepende. Se me vi estimulando o Dico a brigar com o Jacaré,
foi só porque ele estava defendendo o Tininho que, embora valente e brigão, era muito mais
fraco, ia levar uma surra daquelas. Não fiz o mesmo que o Dico porque na verdade eu não
conseguia sentir raiva do Jacaré a ponto de brigar, como não sentia de ninguém. Quando
alguém fazia alguma coisa contra mim, antes de ficar com raiva eu pensava que ninguém pode
ser tão ruim a ponto de desejar mal aos outros. Se aconteceu é porque ele perdeu a cabeça,
ou então porque não entende direito as coisas, é burro ou ignorante — se eu fosse assim
também, em seu lugar faria o mesmo.
Só que, por causa disso, não acho que possam me chamar de covarde.
Pois eu, que seria capaz de tudo para evitar uma briga com o Jacaré, deixando de imitar o Dico
e dando aos outros e até a mim mesmo a impressão de estar com medo, no instante em que
ouvi aquela palavra, não sei o que me deu: como se outra pessoa é que tivesse reagido e eu
vendo tudo do lado de fora.
O que vi foi meu braço se erguer, como impulsionado por uma mola, e desferir violenta
bofetada na cara do Birica.
O pasmo ao redor foi total. Ninguém podia acreditar no que tinha visto. Apanhados de
surpresa, todos agora esperavam, num silêncio respeitoso, o que estava para acontecer.
Birica chegou a cambalear, levando a mão ao rosto, que logo ficou vermelho, com a marca dos
meus dedos. Eu tinha batido mesmo com força, uma força maior do que sabia ter. Vi que ele
me olhava, atônito, um olhar abobalhado de quem não sabe o que pensar. Instintivamente
protegi o rosto com os punhos fechados, me preparando para a briga e esperando a reação
dele, que seria de me massacrar. Me preparei até para morrer, quando ele, enorme diante de
mim, desfechasse o primeiro soco. Em vez disso, o que aconteceu não podia ser mais
surpreendente para mim e para todo mundo. Ele fez um gesto vago com a mão no ar, e as
palavras saíram gaguejadas de sua boca:
— Não precisa se ofender, Fernando. Eu falei brincando... Me desculpe.
Naquele instante, por pouco o meu queixo não caiu de tanto espanto, não ficou maior do que
o do próprio Jacaré, que assistia a tudo de boca aberta ali ao lado: o Birica me pediu desculpa!
Afinal entendi o que havia acontecido: Birica, o valentão, aquele com quem ninguém podia, e
que me chamara de covarde, é que estava acovardado! Como a desejar fazer as pazes, ele
agora esboçava um gesto de quem queria mas não ousava botar o braço no meu ombro:
— Eu falei brincando — repetiu, e tentou sorrir.
Daquele dia em diante, não passei a ser o valentão da escola, como seria de esperar — mas
ninguém mais respeitou a valentia do Birica.
CAPÍTULO VII
O MENINO NO ESPELHO
POUCO tempo depois eu iria viver uma das experiências mais fantásticas da minha vida.
Tudo começou com aquela máquina fotográfica, marca Agfa, em forma de caixotinho. Gerson
não deixava que ninguém pusesse a mão nela, a não ser quando ele próprio queria ser
fotografado. Então contava seis passos e ia postar-se diante da máquina, enquanto alguém, a
seu pedido, de costas para o sol, com o cuidado de quem segura um alçapão com passarinho
dentro, apenas apertava o botão. Quase sempre aparecia na foto, além do fotografado, a
sombra comprida de quem batia a chapa.
As câmeras fotográficas eram verdadeira preciosidade, e quem tinha uma, como o Gerson,
despertava inveja em todo mundo.
Um dia ele me disse que ia fazer uma experiência. Mandou que eu ficasse junto ao muro
branco do quintal, como se estivesse conversando com alguém. Depois de bater a foto, fez
com que eu passasse para o lugar desse alguém, e sem rodar o filme tornou a fotografar.
Revelada a foto, veio me mostrar o resultado, me enchendo de assombro: um retrato em que
eu aparecia duas vezes, como se fosse outra pessoa, conversando comigo mesmo!
Tenho até hoje essa foto, que deu margem a tantas fantasias, quando eu era menino: ficava a
contemplá-la, fascinado, pensando como seria bom se realmente existisse uma pessoa igual a
mim.
Minha aspiração naquela época era esta: encontrar um sósia. Não pensava em outra coisa,
desde que assisti a um filme em que o ator fazia dois papéis: vai passando por uma rua e de
repente esbarra num homem absolutamente igual a ele. Os dois se olham, espantados. Só que
um era detetive, o outro era bandido, o que acabava criando uma grande confusão.
Mais tarde fiquei sabendo que o truque era o mesmo que o Gerson havia usado com a sua
máquina de retratos: expor duas vezes o mesmo filme.
A partir de então, passei a procurar um sósia. Onde quer que eu fosse e houvesse outros
meninos como eu — na escola, no circo, no cinema, no campo de futebol — buscava encontrar
alguém parecido comigo. E procurava com tanta intensidade, com tamanha certeza de encontrar, que não tinha dúvida alguma: mais
cedo ou mais tarde esbarraria com um, como o detetive naquela fita.
Só não poderia jamais imaginar que seria da maneira como um dia aconteceu.
Nas minhas buscas, não deixei de encontrar meninos bastante parecidos comigo. Na
associação de escoteiros havia um, chamado Luisinho, que era a minha cara, cuspida e
escarrada. Mas só de longe: se a gente observasse de perto, acabava descobrindo uma porção
de diferenças. Ele era um pouquinho mais baixo do que eu, meio dentuço e tinha os cabelos
mais claros. Sua voz também era diferente da minha, fina e esganiçada, e ao falar ele tinha o
hábito, que eu não tinha, de franzir a cara como quem está com dor de barriga. Enfim: era
completamente diferente de mim.
Mesmo os gêmeos que eu conhecia não eram lá tão iguais como se dizia. Na nossa classe havia
dois irmãos gêmeos, o Beleléu e o Catatau. Eram parecidíssimos, a ponto de ser confundidos
pela professora. Mas se a gente reparasse bem, descobria que um tinha o rosto mais fino que
o outro, não sei se o Beleléu ou o Catatau, e um tinha uma berruga no queixo que o outro não
tinha, não sei se o Catatau ou o Beleléu. De qualquer maneira, tivesse eu um irmão gêmeo
como eles, e já me daria por muito satisfeito.
POR que diabo eu queria encontrar alguém igual a mim? É o que ficava pensando, a olhar a
minha própria figura refletida no espelho. Eu não achava graça nenhuma em mim, confesso
que desde então eu já não era o meu tipo. Mas era comigo mesmo que eu tinha de viver e,
neste caso, um menino feito aquele ali diante de mim é que eu gostaria de encontrar, sem
tirar nem pôr. Um menino que, em tudo e por tudo, fosse absolutamente igual a mim —
porque do contrário não tinha graça. Que falasse como eu, se vestisse como eu, andasse como
eu, pensasse e sentisse como eu. Juntos, nós dois seríamos capazes de tudo, das melhores
brincadeiras, e até mesmo conquistar o mundo.
E ficava horas me observando, fazendo caretas e gatimonhas para a minha figura, falando
comigo mesmo como se fosse outra pessoa:
— Agora, por que você não cala a boca e escuta o que eu estou falando? Por que tem de ficar
me imitando, repetindo tudo que eu faço?
Levantava a perna, e ele levantava também, ao mesmo tempo. Abria os braços, e ele fazia o
mesmo. Cocava a orelha, e ele também.
Mas o que mais me intrigava era a única diferença entre nós dois. Sim, porque um dia
descobri, com pasmo, que enquanto eu levantava a perna esquerda, ele levantava a direita;
enquanto eu cocava a orelha direita, ele cocava a esquerda. Reparando bem, descobria outras diferenças. O escudo da escola, por exemplo, que eu trazia colado no bolsinho esquerdo do uniforme, na blusa dele era no direito.
Para testar, coloco a mão direita espalmada sobre o espelho. Como era de esperar, ele ao
mesmo tempo vem com a sua mão esquerda, encostando-a na minha. Sorrio para ele e ele
para mim. Mais do que nunca me vem a sensação de que é alguém idêntico a mim que está ali
dentro do espelho, se divertindo em me imitar. Chego a ter a impressão de sentir o calor da
palma da mão dele contra a minha. Fico sério, a imaginar o que aconteceria se isso fosse
verdade. Quando volto a olhá-lo no rosto, vejo assombrado que ele continua a sorrir. Como, se
agora estou absolutamente sério?
Um calafrio me corre pela espinha, arrepiando a pele: há alguém vivo dentro do espelho! Um
outro eu, o meu duplo, realmente existe! Não é imaginação, pois ele ainda está sorrindo, e
sinto o contato de sua mão na minha, seus dedos aos poucos entrelaçarem os meus.
Puxo a mão com cuidado, descolando-a do espelho. Em vez da outra mão se afastar, ela vem
para fora, presa à minha. Afasto-me um passo, sempre a puxar a figura do espelho, até que ela
se destaque de todo, já dentro do meu quarto, e fique â minha frente, palpável, de carne e
osso, como outro menino exatamente igual a mim.
— Você também se chama Fernando? — pergunto, mal conseguindo acreditar nos meus olhos.
— Odnanref — responde ele, e era como se eu próprio tivesse falado: sua voz era igual à
minha.
— Odnanref?
Sim, Odnanref. Fernando de trás para diante. Era em tudo semelhante a mim, menos em
relação à direita e à esquerda, que nele eram ao contrário, sendo natural, pois, que seu nome,
isto é, o meu, fosse ao contrário também. Por uma coincidência, Odnanref era o meu nome de
guerra, na sociedade secreta Olho de Gato.
— Por isso mesmo — confirmou Odnanref, dando-me um tapinha nas costas e rindo, feliz: —
Foi você que me desencantou, adotando o meu nome. Senão eu jamais teria vindo, pois a lei
do mundo dos espelhos proíbe terminantemente que a gente venha ao mundo de vocês. A
menos que alguém consiga desvendar o nosso encanto. O meu era esse, e você adivinhou. Eu
só estava esperando que você me puxasse, como acabou de fazer. O contrário é possível,
como aconteceu com Alice, que passou para o lado de dentro do espelho e foi nos visitar.
Também, até hoje foi a única a realizar essa proeza.
Depois de esfregar os olhos e me certificar de que não estava sonhando, voltei-me para o
espelho, procurando ver nele a minha figura refletida. Se visse, seria capaz de retirá-la também? E quantas vezes isso aconteceria, para formar uma
verdadeira legião de meninos iguais a mim? Mas simplesmente não vi ninguém no espelho,
como aconteceu quando fiquei invisível.
No espelho eu via apenas refletidos os móveis do quarto atrás de mim. E a porta de entrada,
que acabava de se abrir para o Toninho entrar.
Foi ele aparecer e Odnanref de um salto se agachou rapidamente, escondendo-se atrás da
minha cama.
— Que é isso, Fernando? Falando sozinho? — estranhou meu irmão.
Disfarcei como pude, até que ele saísse do quarto. O meu sósia reapareceu, com um suspiro de
alívio:
— Puxa, por pouco ele não me vê! Precisamos tomar cuidado e combinar umas coisas, para
que isso não torne a acontecer.
DESLUMBRADO com a perspectiva de ter alguém igual a mim, como um perfeito irmão gêmeo,
eu não imaginava as dificuldades que iria enfrentar. A falta de minha imagem no espelho, por
exemplo, era uma delas: me criava problemas para pentear os cabelos ou escovar os dentes
sem poder me ver.
Combinamos que, a partir de então, ele me substituiria quando eu quisesse, mas jamais
deveríamos ser vistos juntos. Ninguém poderia desconfiar de nossa existência dupla, pois com
isso se acabaria o encanto, significando o seu imediato regresso, para todo o sempre, ao
interior do espelho.
Em compensação, ele me revelou uma surpresa a mais, como se fosse pouco o milagre de
sermos dois: sempre que eu quisesse, poderia ver, ouvir, pensar e sentir tudo o que ele via,
ouvia, pensava e sentia. Se ele comesse um doce, por exemplo, eu podia sentir o gosto; se
achasse graça em alguma coisa, eu podia rir, mesmo que estivesse a quilômetros de distância.
O importante é que só se dava quando eu quisesse: das coisas ruins ou simplesmente sem
graça eu me dispensaria de tomar conhecimento.
O que significava que ele poderia tomar remédio em meu lugar. E assistir às aulas mais cacetes
(para mim eram quase todas), sem que eu deixasse de aprender o que nelas se ensinasse.
Poderia até mesmo fazer provas para mim, enquanto eu ia empinar papagaio, pegar
passarinho, jogar pião ou bola de gude.
E assim foi, durante algum tempo. Nunca me diverti tanto. Só que eu tinha de tomar muito
cuidado para não trair o meu segredo. Às vezes me distraia e minha mãe surgia no alto da
escada da cozinha:
— Uai, Fernando, como é que você já está aí embaixo no quintal, se ainda agora te vi lá no seu
quarto? Por onde você desceu?
Passava outros apertos, como o da blusa do uniforme de Odnanref, que era ao contrário, o
escudo do lado oposto. Tínhamos de trocar de blusa todo dia que ele ia à aula em meu lugar.
Até o cabelo criou problemas: eu partia do lado esquerdo e ele do lado direito. Tivemos de
acabar ambos partindo ao meio.
Pois um dia eu é que acabei por distração indo à aula com a blusa dele. A professora percebeu o bolso do lado direito, tive de inventar uma história complicada para
explicar aquilo: um colega me havia arrancado o bolso numa briga e a costureira pregou do
lado errado... Não sei se ela acreditou. Mas o pior é que Odnanref era canhoto, e quanto a isto
não podíamos fazer nada. Quando ele ia almoçar com minha família, para que eu pudesse ficar
vadiando na rua, era difícil disfarçar, pois não sabia segurar o garfo com a mão direita. E na
escola era pior ainda, já que só escrevia com a mão esquerda. Tive de inventar que eu estava
treinando para usar ambas as mãos, tinha jeito com as duas, tanto fazia usar uma ou outra. E
as pessoas grandes ficavam admiradas, dizendo que nunca haviam percebido que eu era
ambidestro. Mais uma palavra nova que eu aprendia.
Odnanref me revelava verdadeiras maravilhas. Conhecia coisas do outro mundo. Me contou
que existe vida em outros planetas, em milhões deles, com tudo igual â vida na Terra,
reprodução exata de tudo que aqui acontece, as mesmas pessoas, os mesmos países, os
mesmos problemas. Que no mundo dos espelhos, de onde ele viera, era possível viajar para o
passado, correr os séculos até o princípio dos tempos e a criação do universo. Ou ir para o
futuro, saber o que aconteceria de hoje até o final dos tempos. E mais — ele dizia com a sua
voz igualzinha à minha:
— Todo mundo tem na vida uma oportunidade de ser dois. Nos momentos de coragem, por
exemplo, em que a pessoa faz coisas que se julgava incapaz. Os atos de heroísmo, nos
instantes de perigo, quando a gente é capaz de pular um muro ou subir numa árvore que
normalmente seria impossível de conseguir, quem você pensa que está fazendo tudo isso
senão o outro?
Aquela tinha sido a minha oportunidade, jamais teria igual.
E viveríamos felizes um com o outro, desde que ninguém soubesse, mas um dia botei tudo a
perder.
FOI num sábado — me lembro bem. Tinha chovido muito, e nós ficáramos em casa, brincando
no quarto, distraídos — pois nos bastávamos em nossas brincadeiras, e nos completávamos,
não precisando de mais ninguém para que a vida fosse uma fonte permanente de alegria e
distração. Eu estava sentado no chão, colando umas figurinhas num álbum e Odnanref, de pé,
junto ao armário (a figura dele, é lógico, não se refletia no espelho), tentando consertar para
mim um automovinho de corda. Foi quando minha mãe me chamou para tomar o remédio
(um fortifícante, pois achava que eu andava fraquinho). É claro que pedi ao Odnanref para ir
em meu lugar, e ele foi de bom grado.
Eu esquecera de trancar a porta do quarto e de súbito o Toninho entrou. Quando me viu
sentado ali no chão, arregalou os olhos e quase caiu sentado também:
— Como? Se você passou por mim neste segundo ali no corredor?
— Você está é maluco — tentei disfarçar, o pensamento girando rápido na cabeça, em busca
de uma explicação, antes que fosse tarde demais. Naquele instante Odnanref, já tendo
tomado o remédio que minha mãe lhe havia dado, voltou calmamente para o quarto.
Toninho se virou e viu quando ele surgiu na porta. Ficou olhando para ele, depois para mim,
novamente para ele, com os olhos deste tamanho. De repente soltou um berro e precipitou-se
porta afora, atropelando o meu sósia e atirando-o ao chão. Dei um pulo e ajudei-o a se
levantar. Depois tranquei a porta por dentro, ofegante, a ouvir a gritaria do Toninho lá fora,
nos denunciando a todo mundo.
— E agora? — perguntei, ansioso.
— Não há nada a fazer — e ele me abraçou: — Estou descoberto, tenho de ir embora.
— Às vezes ainda há jeito — disse eu, comovido, retribuindo o abraço: — Não me deixe
sozinho, não vá embora, por favor.
E procurava contê-lo. Mas ele se desembaraçava delicadamente de mim:
— Tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde. Até que fomos de sorte, fiquei tanto tempo...
Há pessoas que não conseguem senão alguns segundos. Outras não conseguem nunca...
Adeus, Fernando, meu irmão. Feche os olhos, por favor.
— Adeus, Odnanref — murmurei, quase chorando.
Fechei os olhos, como ele pedira. Quando tornei a abri-los, vi por entre as lágrimas a minha
figura refletida no espelho, como sempre. Ele se fora para nunca mais.
Ouvi que batiam na porta com insistência:
— Fernando, abre aí!
Era meu pai, minha mãe, o Gerson e até a Alzira, convocados pelo Toninho para testemunhar o
fenômeno. Mal destranquei a fechadura, eles irromperam quarto adentro num tropel, como
se fossem salvar o pai da forca:
— Onde? Onde está o Fernando?
— Estou aqui — respondi, admirado: — Não estão me vendo?
— O outro Fernando! O outro Fernando!
— Que outro?
Olhavam ao redor, como se estivessem procurando alguém. Não esqueceram de espiar
debaixo da cama ou dentro do armário. Depois se voltaram para o Toninho:
— Acho que você está ficando maluco — disse o Gerson.
— Nesta casa ultimamente andam acontecendo coisas muito malucas — disse mamãe.
— Sempre aconteceram — disse papai.
E saíram todos. Mais tarde, ao jantar, quando comentaram o episódio, não deixaram de
gracejar com o Toninho, já descrentes do que ele insistia em dizer que era a pura verdade: vira
dois Fernandos, um dentro do quarto e o outro entrando, depois de tomar o remédio.
— Acho que você é que anda precisando de remédio — comentei, mais calmo: — Está
sofrendo da vista.
De volta ao quarto, fui levar uma palavra de tranqüilidade para o meu amigo no espelho:
— Tudo bem — e sorri para ele.
Mas ele se limitou a dizer ao mesmo tempo:
— Tudo bem — e sorriu para mim.
CAPÍTULO VIII
MINHA GLORIA DE CAMPEÃO
NASCI no dia 12 de outubro, aniversário do Gerson, que estava fazendo oito anos. Meu irmão
tinha pedido de presente uma surpresa, e surpresa ele teve: nasci em casa, como acontecia
naquela época, e minha mãe mandou botar o bebê na cama do Gerson, como presente de
aniversário.
Quando ele acordou e deu comigo a seu lado, ficou na maior alegria. Foi um custo para se
convencer de que eu não era um brinquedo dele, que pudesse ficar carregando pela casa de cá
para lá o tempo todo.
Dai o carinho com que ele me tratou a vida toda. Embora o Toninho, que era só dois anos mais
velho, sempre tenha sido também muito meu amigo, e fosse o meu companheiro de quarto, o
Gerson, pelo fato de já ser para mim um homem com seus dezesseis anos, me despertava uma
grande fascinação; eu queria ser como ele quando crescesse.
Diga-se de passagem que, ao completar oito anos, também pedi à minha mãe um bebê. Ela
achou muita graça, botando na minha cama um boneco, o que me deixou com muita raiva ao
acordar, pois além do mais eu não era menina para ganhar um presente daqueles.
Estou contando tudo isto para chegar a um episódio de minha infância que devo ao Gerson, e
relacionado a futebol, que sempre foi a sua grande paixão. Até hoje, tantos anos passados,
com filhos crescidos e cheio de netos, ainda joga futebol de salão e tem a parede do seu
quarto decorada com retratos de jogadores.
Quando garotinho eu ia vê-lo jogar no gol do América, que era o time de nossa devoção —
primeiro nos juvenis, depois no time titular, do qual era reserva, apesar de sua pouca idade.
Até então, o futebol vinha constituindo para mim uma série de sucessivos fracassos. Para
começar, na escola eu sempre ficava por último na escolha dos times que os dois melhores
faziam, alternadamente, depois de tirarem par-ou-ímpar para saber quem começava. No dia
em que um dos que escolhiam me apontou por distração antes do fim, os já escolhidos
protestaram:
— Ah, ele não!
Tinha de me conformar com o fato de ninguém me querer no seu time. Procurava me consolar
com a idéia de que me rejeitavam não por jogar mal, mas por ser dos menores. Não podia nem
apelar para a ignorância, como fazia o Bolão, um gorducho que mal conseguia correr em
campo, mas que ia avisando logo, por ser dono da bola:
— Ou eu jogo, ou ninguém joga.
Não que eu fosse assim tão ruim, dos piores. Conseguia controlar a bola que me passavam
(quando passavam) jogando em geral (quando deixavam) na ponta direita, por ser pequenino
mas veloz. Conseguia também levá-la de vez em quando à linha de fundo, como fazem os
pontas mais famosos. Só que acabava saindo pela linha de fundo com bola e tudo, pois me esquecia de centrar.
Eu era muito distraído, eis o problema. Ficava prestando atenção em coisas que nada tinham
com o jogo: um carro que passava na rua, um passarinho pousado na árvore, um avião no
céu... De repente era aquela gritaria dos outros, me incentivando:
— Vai nela! Vai nela!
Era comigo? Eu caía das nuvens, procurando ir na bola, mas nem mesmo sabia onde ela
estava: quando a descobria, o zagueiro adversário já se havia antecipado, afastando o perigo,
enquanto os companheiros reclamavam, pedindo minha substituição.
O resultado é que eu era um peso morto nas raras peladas que me deixavam disputar, tanto
na escola como no campinho daquele lote vazio perto de casa.
Um dia experimentei jogar de goleiro, e o resultado foi ainda mais desastrado: engoli cinco
gols, sendo três contra, feitos por mim mesmo, na hora da confusão (dois de cabeça e um com
o traseiro).
TAMANHA era a minha frustração por causa do futebol, que resolvi treinar sozinho, para ver se
melhorava o meu rendimento no jogo. Ia para o campinho de pelada quando já não havia
ninguém lá, e ficava horas a me distrair com uma bola que meu pai me dera, a meu pedido.
(Não me ocorreu apelar, como o Bolão, para o fato de agora também ser dono da bola.)
Tentava, sem resultado, matar na cabeça, controlar no peito ou no joelho, sustentar a bola no
ar fazendo embaixada, como via os grandes jogadores fazerem. Conseguia no máximo dois ou
três lances e ela rolava logo para longe de mim, resvalava no meu pé e o chute em gol saía
espirrado, sem direção. Em geral eu voltava para casa coberto de suor do esforço feito e de
desânimo com o resultado obtido.
Entardecia, quando um dia, sentado no tijolo que marcava um dos lados do gol, pensando em
desistir, levantei o rosto, sentindo que alguém me observava de longe. Era o Gerson. Ele se
aproximou:
— Não é nada disso. Está tudo errado. Vou te ensinar como se faz.
Disse que estava ali havia muito tempo, acompanhando o meu esforço. Pegou a bola e
mostrou como eu devia fazer para erguê-la do chão com o pé: uma puxadinha por cima e
depois enfiar de leve o bico da chuteira por debaixo. O chute devia ser com o peito do pé e
não com a ponta, nas bolas altas; nas rasteiras, com o pé meio de lado:
— Assim, quer ver?
E ele chutava com perfeição, a bola ia direitinho ao gol. Depois me mostrou como se dava cabeçada: com a testa e não com o alto da cabeça. Por isso é que eu
chegava sempre em casa com ela doendo. E a testa é que ia na bola, não a bola na testa.
Naquele dia e nos que se seguiram me ensinou uma porção de coisas assim, que eu ia
aprendendo lentamente, para depois tentar praticar sozinho. E olha que ele jogava era no gol.
Não adiantou grande coisa. Na escola eu continuava o último a ser escolhido e me deixavam
entrar no time só para fazer número, quando não havia ninguém mais para completá-lo.
Cheguei a passar pela humilhação de exigirem que eu jogasse o primeiro tempo num e o
segundo tempo noutro, para compensar a desvantagem de me terem como jogador.
Não que este ou aquele já não tivesse percebido em mim algum progresso. Mas haviam
decidido que eu era ruim de bola e não mudariam nunca de opinião. Além do mais, eu
continuava sem conseguir acompanhar o tempo todo o desenrolar do jogo: qualquer coisa me
distraia a atenção.
Houve um dia em que, final de partida, a bola veio rolando até meus pés. Eu estava
praticamente sozinho diante do gol e em posição legal, o goleiro já batido, caído ao chão, era
só chutar. Em vez disso, pensando que não estava valendo, que o juiz já tinha apitado ou
qualquer coisa assim, peguei a bola com a mão, me voltei para os companheiros que, na maior
gritaria, insistiam comigo que chutasse, e perguntei ingenuamente:
— Que foi que aconteceu?
Logo o goleiro adversário se aproximou, e me tomou a bola das mãos, dizendo em tom de
zombaria:
— Com licença, artilheiro.
Perdemos o jogo por causa disso. Naquele dia voltei para casa chorando.
ACABEI desistindo de jogar e me limitando a ir com o Gerson e o Toninho assistir às grandes
partidas. Mas a minha mágoa continuava. Eu me sentia um fracassado na vida, por não dar
certo no futebol.
Pois foi exatamente no dia 12 de outubro, quando completei oito anos, que se deu a minha
reabilitação, de maneira tão fantástica que eu mesmo não acreditaria se me contassem. Como
já disse, foi graças ao Gerson, que também fazia anos naquele dia.
Era o jogo de decisão final do Campeonato Mineiro: Atlético contra América. Torcíamos
apaixonadamente pelo América, não só por ser o time de nossa predileção mas, com mais
razão ainda, porque o próprio Gerson ia jogar de goleiro, em substituição ao famoso Princesa,
que estava contundido. Apesar de seus dezesseis anos, e jogando ainda nos juvenis, era muito
desenvolvido para a idade, podendo perfeitamente passar por homem feito, como os demais do primeiro time. A formação do América, segundo o esquema dois-três-cinco que vigorava na época, era a seguinte:
GERSON
CHICO PRETO NEGRÃO
RAFAEL PIMENTÃO BEZERRA
JAIR JAVERT JORIVÊ JACY JICO LEITE
A linha, como se vê, era toda ela composta de nomes começados com J (inclusive o ponta
esquerda, Chico Leite, que por causa disso passou a ser Jico Leite). Quem não acredita, que
consulte os jornais da época.
O time do Atlético se compunha dos seguintes craques:
KAFUNGA
NARIZ MAURÍCIO
MAURO BRANT CAIEIRA
CHAFIR SAID OIRAM JAIRO CUNHA
Oiram era o grande centro-avante Mário de Castro, cujo pai não admitia que ele fosse jogador
de futebol, e por isso figurava com seu primeiro nome de trás para diante.
Gerson me reservou uma primeira surpresa: tinha me arranjado um uniforme completo do
time do América, para que eu entrasse no campo como mascote.
Só o fato de sair do vestiário em meio aos jogadores de verdade já me enchia de emoção.
Sentia-me ainda mais pequenino no meio daqueles homenzões peitudos e de pernas
cabeludas que invadiam o campo como uma manada de búfalos, sob os delirantes aplausos da
torcida, que lotava completamente o estádio do América. Gerson me conduzia pela mão,
quando nos alinhamos para fazer o cumprimento de praxe à assistência. Depois os jogadores
se espalharam, batendo bola e fazendo exercícios de aquecimento. Fiquei por ali, ciscando
entre um e outro, a viver a minha grande emoção.
Mas o meu maior momento de glória ainda estava para chegar.
O juiz convocou os jogadores, que se dispuseram a dar início à partida, colocando-se cada um
em seu lugar no campo. Gerson foi para o gol, depois de me deixar em companhia do
treinador no banco dos reservas.
Foi dada a saída. Logo se viu que iríamos assistir a uma peleja das mais emocionantes. Os
ataques se sucediam de lado a lado. O América pressionava e Kafunga, num de seus grandes
dias, fazia defesas prodigiosas. Gerson não deixava por menos. Os contra-ataques do Atlético encontravam no meu irmão uma barreira intransponível:
— Gerson não está deixando passar nem pensamento! — diziam os reservas, a meu lado,
entusiasmados.
Os lances violentos também se sucediam. A todo momento um jogador era substituído por
contusão. O primeiro tempo terminou empatado de zero a zero.
Logo ao início do segundo tempo, o juiz apitou contra o América um pênalti que nossa torcida
reclamava, revoltada, jamais ter existido. Cobrada a penalidade máxima, Gerson não teve
como segurar, apesar de conseguir tocar os dedos na bola, numa ponte magistral. Um a zero
contra nós.
Por mais que o América reagisse, não conseguia igualar o marcador. Faltavam quinze minutos
para o término da partida, quando enfim uma bola cruzada de Javert para a área foi dar na
cabeça de Jacy, que emendou de primeira, sem que Kafunga nada pudesse fazer. Um gol de
susto, como se costuma dizer. Estava empatada a peleja.
O tempo passando, as duas equipes buscando ferozmente o desempate. Aos cinco minutos do
término da partida, houve uma interrupção, não entendi bem por quê, e, pelo jeito, a torcida
ainda menos, pois prorrompeu na maior gritaria. Ao reiniciar-se o jogo, a linha americana
esboça um perigoso ataque pela direita. De posse da bola, Jico Leite penetra a defesa
contrária, mas se choca violentamente com Nariz e rola no chão, contundido, botando sangue
pelo nariz.
Pânico nas hostes americanas: todos os reservas já haviam entrado em campo, não sobrara
ninguém para substituições, que fazer? Segundo as regras daquele tempo, time nenhum podia
jogar desfalcado, sob pena de ser eliminado do campeonato.
Disputa interrompida, o jogador machucado é retirado na maça. Gerson vai confabular com o
juiz, gesticula, depois vem correndo até o banco dos reservas onde me encontro, em
companhia do treinador e do massagista. Fala qualquer coisa ao ouvido do treinador, me
apontando, e este se volta para mim, com ar grave:
— Você vai ter de entrar, Fernando. Não tem mais ninguém. Você é a nossa última esperança.
Não vacilei: além do mais, era justamente a ponta direita, minha posição predileta! Pois se o
América precisava de mim para completar o time, contassem comigo, era uma questão de
honra. Apenas mais cinco minutos — mas futebol, como se sabe, é uma caixa de surpresas. Em
cinco minutos tudo pode acontecer.
E aconteceu. Mal tive tempo de fazer o aquecimento. Como se fosse a coisa mais natural do
mundo, entrei em campo. A aclamação da assistência foi ensurdecedora — o que não chegou a me perturbar: tinha de me concentrar na missão que
me cabia. Gerson havia me ensinado muito bem o que devia fazer.
Jorivê deu a saída do meio do campo, cumprindo ordem do juiz: atrasou para Pimentão, que
adiantou para Jacy. Caieira rouba-lhe a bola, passando para Chafir, que avançou
perigosamente, Gerson se preparou para defender, Chico Preto aliviou, pondo para fora num
chutão.
Ao contrário do que fazia nas peladas de meninos, eu procurava acompanhar, lance por lance,
o desenrolar da disputa, em seus instantes finais. Chafir fez a cobrança da lateral, dando de
presente para Negrão, que, sem perda de tempo, acionou Bezerra. Quando eu,
estrategicamente colocado no setor direito do gramado, como me competia, já pensava que
não daria tempo sequer de intervir numa só jogada, eis que Bezerra faz com que a bola venha
rolando até mim.
Depois de dominá-la numa manobra que arrançou aplausos da torcida, e tendo Jacy na
cobertura, driblei Nariz, deixando-o estatelado de surpresa, e tabelei com meu companheiro.
Este passou ao Jorivê, enquanto eu me deslocava para recebê-la de volta. Então disparei num
pique, sob o delírio da assistência, e lá fui eu com minhas perninhas curtas no meio daqueles
cavalões, driblei um, outro, deixei para trás a defesa adversária. E me vi frente a frente com o
goleiro. Kafunga abria os braços gigantescos, achei que queria me pegar e não à bola. Fiz que
chutava, como se fosse encobri-lo, ele pulou. Então passei com bola e tudo por entre as pernas dele e marquei o gol da vitória.
Foi aquela ovação, a torcida delirava. Logo em seguida soou o apito final e meus companheiros
de equipe correram para me abraçar e carregar em triunfo. O que para eles era fácil, dado o
meu tamaninho. E assim demos a volta olímpica, sagrados campeões.
CAPÍTULO VI
NAS GARRAS DO PRIMEIRO AMOR
UM DIA perguntei à Mariana:
— Você quer ser minha namorada?
A sociedade secreta Olho de Gato havia deixado de se reunir, mas Mariana e eu
continuávamos nos encontrando, apenas como amigos. Os outros dois agentes secretos
continuavam também por ali, prontos para entrar em ação, quando convocados: Hindemburgo
com as suas cachorrices, e Pastoff sempre acoelhado no fundo do quintal.
A resposta de Mariana me deixou estatelado de surpresa:
— Você ainda é criança.
— E daí? — gaguejei, despeitado: — Você também não é?
Ela olhou para um lado e para outro, vendo se não havia ninguém por perto, e aproximou a
boca do meu ouvido:
— Eu já tenho namorado.
Minha surpresa foi ainda maior. Tentei disfarçar com um gracejo:
— Não vai me dizer que é o Pastoff. Mariana tinha um carinho especial pelo coelho. Mas ela
continuou séria:
— Se você jura que não conta para ninguém, eu digo quem é.
Jurei com os dedos em cruz.
— Então espera um instante.
Foi até sua casa e em pouco voltava a correr, trazendo um recorte de revista:
— Olha aqui ele.
Era o retrato de um famoso artista de cinema, nem me lembro qual.
— Ora, isso aí não é namorado nenhum — comentei, com desdém, mas no fundo aliviado: —
Eu digo é namorado mesmo. Gente de verdade, como eu.
Ainda me sentia ferido no meu amor-próprio, desprezado em favor de um rival inexistente:
— Esse não passa de um pedaço de papel. Ela não se abalou:
— Pois fique sabendo que é a ele que eu amo — e beijou o retrato com fervor diante de meus
olhos. Depois fez meia-volta e correu para dentro de casa, recorte apertado contra o peito.
MAIS de uma vez eu já tinha ido observar os casais nos bancos da praça, ou passeando entre
os jardins. O que me intrigava era o jeito meio solene, a compostura deles. Por que ficavam
sozinhos? Que é que tanto conversavam? E principalmente, por que às vezes não diziam nada,
calados um junto do outro, como se estivessem aborrecidos ou pensando na morte da
bezerra? Por que não iam fazer alguma coisa, tratar da vida, cada um para o seu lado?
Naquela época não se admitia que os namorados nem mesmo se dessem as mãos — a menos
que já estivessem comprometidos: feito o pedido de casamento e celebrado oficialmente o
noivado, podiam os dois sair então de braço dado pela rua. Podiam até mesmo ficar
conversando baixinho, sentados na varanda ou no sofá da sala, desde que na presença
vigilante de alguém — em geral a mãe da moça a tricotar na cadeira de balanço.
Eu já sabia tudo isto e sabia também que namorar, embora meio proibido pelos pais, ou por
isso mesmo, era uma coisa boa. Mas só para as meninas. Elas é que não tinham outro assunto,
principalmente as mais velhas, quando se reuniam, aos risinhos e cochichos. Para nós, homens
de sete, oito, nove anos, namorar era uma bobagem, coisa para mulher. O que vinha a ser um
contra-senso: como as meninas poderiam se dedicar ao namoro, se os meninos não pensavam
em fazer o mesmo?
Foi o que me levou naquele dia a quebrar a regra que nos havíamos imposto de não dar
confiança às mulheres, e perguntar à Mariana se queria me namorar. Jamais esperava uma
negativa, e sua reação me deixou humilhado: quem ela pensava que era? Alguma princesa?
Mas num ponto não deixava de ter razão — foi o que logo concluí: namoro era coisa séria, de
gente grande, e para toda a vida — namoro, noivado, casamento. Não era brincadeira de
menino. Por isso ela tinha escolhido um homem para namorar e não queria saber de uma
criança como eu. Pouco importava que ela também fosse criança e ele um artista de cinema,
que nunca seria visto em carne e osso.
Decidi fazer o mesmo. Passei a reparar nas artistas, a fim de escolher uma para mim, a que me
parecesse mais bonita. Em meio aos retratos de meus ídolos, que eram em geral jogadores de
futebol e lutadores de boxe, passei a colecionar também o de atrizes de cinema, em figurinhas
que acompanhavam as balas Fruna. Mas amava todas elas, indistintamente, não me decidia
por nenhuma em particular. Ao contrário de Mariana, não me contentava em ter como
namorada alguém que só existia no papel ou na tela.
Foi quando surgiu em Belo Horizonte aquela que passou a encarnar na vida real a figura do
meu primeiro amor.
CÍNTIA era minha prima — filha do irmão de mamãe, que morava no Rio. Viera passar uns dias
conosco. Era a primeira vez que eu tomava conhecimento da sua existência. Devia andar pelos
dezessete, dezoito anos, o que queria dizer que era para mim uma mulher feita — e a mais
bela que eu jamais vira de perto. Usava blusa sem manga e com decote, saia-calça, tinha os
cabelos louros, os olhos verdes e ainda por cima fumava.
Mamãe se escandalizou ao vê-la tirar calmamente da bolsa um cigarro na vista de todos e
acender, para depois cruzar as pernas e soltar devagarinho a fumaça pelas narinas:
— Você fumando, menina? Seu pai sabe disso?
— Ora, titia, que é que tem de mais?
— Uma moça direita não fuma.
— Hoje em dia toda mulher fuma. Não é mais pecado.
E ela desviou da testa uma madeixa de cabelos, movimentando a cabeça para o lado num
gesto que me pareceu simplesmente lindo.
A sua presença fez com que nossa casa ganhasse uma aura de encanto, como um lugar
privilegiado, de um fascínio que parecia impregnar o próprio ar que eu respirava. Quando ela
surgia na sala, tudo se iluminava. Eu voltava correndo da escola para não perder um minuto da
sua presença, e não arredava pé de casa, nem mesmo para ir ao quintal, meu reino esquecido.
Mamãe estranhava aquela mudança nos meus hábitos:
— Não sei o que deu nesse menino.
Nem eu mesmo sabia que estava experimentando pela primeira vez a sensação inebriante de
uma paixão.
Como se fosse pouco, Cintia tocava piano. Eu ficava a seu lado, embevecido, a ver as mãos
longas e brancas deslizando pelas teclas do velho piano na sala de visitas. Em casa ninguém
tocava, a não ser eu mesmo, batucando o Bife com dois dedos, escondido de meu pai: ele
costumava dizer, certamente para silenciar a musiquinha insuportável, que ela atraía o
demônio. Cintia sabia uma porção de melodias americanas, chamadas de fox-trot. Veio daí,
creio, o meu gosto pelo jazz:
— Toca de novo aquela primeira, Cintia.
Ela tocava esta e aquela, a meu pedido. Depois atirava para o lado, naquele gesto seu, a
cortina de cabelos que lhe caía no rosto. Um dia, ao dar comigo a contemplá-la, extasiado,
inclinou-se rindo e me deu um beijo no rosto.
Meu coração disparou, e eu com ele: saí correndo da sala, fui me refugiar no fundo do quintal,
pela primeira vez naqueles dias. E naquela noite não consegui dormir. Era ela que eu via diante
de mim, no escuro do quarto, tocando piano, os cabelos louros, os olhos claros, a cena do
beijo. Toninho, ao perceber que eu continuava acordado, chegou a perguntar se eu estava
sentindo alguma coisa. Não, eu não sentia nada — a não ser o desejo de que a noite passasse
depressa e chegasse logo a manhã para que eu pudesse rever a minha amada.
Mas porque a partir daquele instante tomei consciência de que Cíntia era o meu primeiro amor.
MAS o que é bom dura pouco. Só medi a verdadeira extensão do sentimento que me possuía,
quando surgiu um tormento para submetê-lo à prova, na forma de um rival:
— Você vai sair com ele, Cíntia? — eu perguntava, como quem não quer nada, ao vê-la se
penteando no quarto, enquanto o Peixoto esperava lá fora, na varanda.
— Vamos ao cinema — ela respondia, diante do espelho, juntando os lábios, como num beijo,
para passar o batom.
O Peixoto era um advogado recém-formado, de anel de grau no dedo, que tivera um negócio
qualquer com meu pai, e por causa disso freqüentava a nossa casa. Um dia deu com os olhos
na minha prima e a partir de então começou a aparecer com uma odiosa freqüência. Em pouco
os dois passaram a sair juntos. Não se podia dizer que estavam de namoro, embora já tivessem
até ido passear na praça, como os demais namorados — o que não escapou à minha vigilância,
pois os havia seguido de longe. Mas para mim eram muito mais do que isso: ele era um
indesejável, um intruso, um intrometido em nossa casa, e ela uma traidora, por lhe dar
tamanha confiança.
— Rapaz distinto, esse Peixoto — dizia minha mãe, no fundo fazendo gosto na relação dos
dois: — Leva a Cíntia para passear, faz companhia a ela, e é respeitador, a gente fica mais
sossegada.
Papai já não era assim tão seguro da distinção do rapaz:
— Não sei não... No fundo me parece meio finório, o que não é nada mau para um advogado.
Mas não vá esse pilantra me aprontar alguma com a menina. Com que cara eu ficaria diante do
seu irmão? Afinal, ele nos confiou a filha...
Era o que meus pais conversavam, sentados no sofá da sala, depois do jantar, julgando-se a
sós, mas ao alcance de meus ouvidos — eu por ali a me fingir de distraído com algum
brinquedo, na verdade atento a tudo que se relacionasse à minha prima. E ela com o outro no
cinema, no clube, no chá-dançante... Quase não parava mais em casa, a ingrata, mal tinha
tempo para mim. Eu odiava o Peixoto com todas as forças, ele acabou percebendo:
— O pirralho não vai muito comigo — disse um dia.
Fiquei indignado: me chamar de pirralho, e ainda por cima na vista dela! Atingido em meus
brios, resolvi reagir. Cheguei a pensar em acionar a sociedade Olho de Gato, mas, pensando
melhor, decidi me vingar sozinho: senti por instinto que não devia envolver a agente Anairam
em meus problemas sentimentais. Aquilo era assunto para ser resolvido de homem para
homem.
Concebi um plano diabólico para afastar da Cíntia o meu insuportável concorrente. Comecei
por intrigá-lo com papai, farejando nele um bom cúmplice, embora inconsciente:
— O Peixoto esqueceu o isqueiro dele no quarto da Cintia.
Ele havia realmente esquecido o isqueiro, mas com ela, e não no quarto. Só que para um
coração em pânico valia tudo, inclusive uma mentirinha. Papai ficou aborrecido:
— O salafrário já está entrando no quarto da menina?
E não perdeu tempo em comentar com mamãe:
— É preciso a gente abrir o olho com esse moço.
Alguns dias depois voltei à carga, desta vez com a própria Cíntia:
— Ontem eu vi o Peixoto lá na Avenida de braço dado com uma moça.
Ela não chegou a se impressionar — talvez porque não soubesse o compromisso que
representava o braço dado, coisa que certamente não prevalecia mais no Rio. Mas na verdade
eu havia visto mesmo o meu rival de braço com uma mulher. Só que não era uma moça, podia
ser até a mãe dele: uma mulher mais velha, toda elegante e enfeitada.
O Peixoto, ele próprio, era metido a elegante, sempre na última moda, calça de flanela creme
e paletó azul-marinho, sapato de duas cores e suspensório de couro trançado, como se usava
então.
Uma noite apareceu em nossa casa com a novidade das novidades: um automóvel, novinho
em folha.
— Quero estreá-lo com você.
Viera buscar minha prima para dar uma volta, e nem se dignou convidar meus pais, que dirá a
mim, para ir com eles:
— Não cabe todo mundo — se escusou, empertigado: — É um carro esporte.
O carro era um daqueles chamados baratinhas, que se podia arriar a capota e tinha uma
tampa atrás com dois lugares (caberia mais gente, portanto). Ficaríamos sabendo depois que
nem mesmo era dele, estava apenas emprestado, em experiência, como se usava então.
Naquele tempo não se admitia também que uma moça de família andasse sozinha no
automóvel de alguém; corria logo o risco de ficar falada. Não sei por que meus pais não
invocaram esse princípio moral, proibindo que ela fosse.
Ali estava a minha oportunidade — decidi rapidamente: criar uma situação que deixasse o
Peixoto para sempre desmoralizado diante da Cíntia. Que fazer? Jogar pó-de-mico nele? Já
tinha pensado nisso — mas podia atingi-la também. Esvaziar o pneu? Botar água no tanque de
gasolina? Tudo o que me ocorreu era pouco, não chegaria a comprometer o rival aos olhos da
minha amada.
Foi quando dei comigo distraidamente alisando a cabeça de Hindemburgo, que se aproximara,
orelhas em pé, para saber de que se tratava.
— Quem sabe se eu atiçar o Hindemburgo em cima dele...
Imaginei o Peixoto fugindo espavorido, o cachorrão nos seus calcanhares, mordendo-lhe a
perna, rasgando-lhe a calça...
— Ai não, Hindemburgo.
Ao vê-lo agachar-se, pernas traseiras ligeiramente abertas, ocorreu-me a idéia luminosa:
— Aí não, Hindemburgo! — repeti, inspirado: — No carro do Peixoto! Depressa, no banco do
carro! No lugar do motorista! Quando ele se sentar...
Hindemburgo compreendeu logo e partiu como um foguete para cumprir a sua missão.
Quando o Peixoto se sentou, antes de abrir a porta para que a Cíntia entrasse também no
carro, estava consumado o desastre. Não houve passeio, não houve nada: Peixoto, chafurdado
no assento, partiu em disparada, numa onda de mau cheiro, sem nem se despedir, e Cíntia
ficou livre dele — eu esperava que para todo o sempre.
A pá de cal seria lançada sobre ele alguns dias depois, quando papai chegasse da rua com uma
novidade:
— Me disseram que o Peixoto vive com uma amante mais velha do que ele.
Na hora, porém, para minha completa surpresa, a reação da Cíntia se voltou contra mim:
— Foi você! Tenho certeza de que isso foi coisa sua, seu moleque!
E se dirigiu aos meus pais, indignada, me apontando:
— Foi ele sim! Ele não gosta do Peixoto, eu sei disso!
Eu não podia mais de emoção, petrificado diante de palavras tão duras. Eu, o seu namorado
inconfesso, chamado de moleque! Meus pais reagiram cada um â sua maneira: mamãe
fazendo um ar de perplexidade que escondia a indecisão entre acreditar ou não dar ouvidos,
papai se pondo a rir:
— Se foi coisa do Fernando, foi um malfeito bem feito.
E ainda teve o bom humor de acrescentar, ele que também não gostava do Peixoto:
— Acho que foi coisa é do cachorro... Cíntia tinha ido para o seu quarto, ainda revoltada com o
que havia acontecido. O desastre, afinal, se voltara contra mim — o mundo parecia ter
desabado sobre a minha cabeça.
Naquela noite fui para a cama mais cedo, pretextando um mal-estar qualquer. Mas não
consegui dormir. Sem deixar que o Toninho percebesse, passei grande parte da noite
chorando.
NA MANHA seguinte encontrei debaixo de minha porta um envelope fechado. Abri-o
ansiosamente com o meu canivetinho, já adivinhando de quem seria. Retirei um pequeno
bilhete:
Saí do quarto precipitadamente, mas não encontrei a Cíntia na sala, nem em seu quarto, nem
em lugar nenhum. Dei com meu pai na copa tomando o seu café:
— Cíntia foi embora? — perguntei, aflito.
— Ela saiu — ele informou tranqüilamente, e acrescentou logo, rindo: — Mas não com o
Peixoto. Saiu com sua mãe, foram fazer compras na cidade.
Cíntia estava de partida na manhã seguinte. Não tive, desde então, oportunidade de estar com
ela a sós um momento sequer, para de alguma maneira responder ao seu bilhete. Quando fui
para a escola, ela ainda não tinha chegado, e ao voltar, ela estava em companhia de algumas
amigas que havia feito em Belo Horizonte, e que ficaram para jantar. Só na manhã seguinte
pude lhe dirigir uma palavra furtiva, já na hora de sua partida:
— Eu também, Cíntia — disse-lhe baixinho.
— Você também o quê? — e ela se curvou para me abraçar, se despedindo.
Deu-me um beijo em cada face, e eu me aproveitei para sussurrar ao seu ouvido:
— Eu também te amo.
Ela ficou parada um segundo, surpreendida, e depois se abriu num sorriso que eu guardo até
hoje entre as lembranças mais lindas da minha vida.
Depois que ela se foi, tranquei-me no quarto e busquei seu bilhete para relê-lo ainda uma vez,
por entre as lágrimas que me escorriam dos olhos. Ao enfiar os dedos no envelope, puxei com
o bilhete um outro pedaço de papel, onde, surpreso, dei com as seguintes palavras:
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Era apenas um pedaço do bilhete, que eu havia cortado em dois ao abrir o envelope. Juntei os
pedaços e pude enfim ler o bilhete completo:
NAQUELA mesma tarde a Mariana, que andava sumida, deu o ar de sua graça:
— Então, sua amiguinha já foi embora? — perguntou com voz irônica.
Respirei fundo, espantando de mim o resto da minha mágoa:
— Minha amiguinha é você, Mariana.
O Menino no Espelho - Fernando Sabino
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CAPÍTULO X
A LIBERTAÇÃO DOS PASSARINHOS
D
A JANELA do meu quarto, vi na mangueira uma linda manga sapatinho completamente
amarela de tão madura. Uma rolinha, pousada no galho, ameaçava começar a comê-la.
Chamei a atenção da Mariana, ali a meu lado:
— Olhe só uma coisa.
Eu tinha resolvido dar aquela manga de presente para ela. Tirei de um dos bolsos da calça o
meu bodoque, do outro algumas pedrinhas, escolhi a mais jeitosa, armei o bodoque, fiz
pontaria e atirei.
Desde que era escoteiro, tinha aprendido que só devia usar o bodoque para praticar o bem,
como apanhar manga. Nunca para quebrar vidraça ou lâmpada de rua, e muito menos matar
passarinho. Costumava armar uma pequena arapuca no fundo do quintal para apanhá-los e
depois tornar a soltar, mesmo que fosse um precioso canário ou um lindo sabiá: meu pai não
admitia criar passarinho em gaiola, achava uma perversidade. E tinha me transmitido esse seu
sentimento:
— Imagine se fizessem o mesmo com você: te criassem dentro de uma gaiola.
Quando o Toninho apareceu lá em casa com um casalzinho de periquitos verdes, que ele tinha
trocado com um menino pelos seus patins, papai mandou imediatamente que soltasse os
bichinhos:
— Depois te dou outro par de patins. De bichos aqui em casa, basta um papagaio, um cachorro
e um coelho. Não se falando nas galinhas ali do seu Fernando.
Fazia alusão à minha galinha Fernanda, que por essa ocasião já tinha morrido de velha. E
arrematou:
— Isso de passarinho em gaiola é coisa desse soldado aí do lado.
O soldado a que ele se referia com aquele ar de desprezo era o major Alberico Pape Faria, que
morava na casa à direita da nossa. Mal sabia eu que em breve esse major estaria em guerra
declarada conosco. Ou nós com ele: não se sabe quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha —
no caso, o passarinho.
TUDO parece ter começado no dia em que a Mariana e eu estávamos no nosso posto de
observação, nos últimos galhos da goiabeira junto ao muro que dava para a rua, entregues a
uma de nossas distrações prediletas: jogar água nos que passavam lá fora, na calçada.
Usávamos uma velha seringa de borracha, encontrada no quarto de despejo, e cuja serventia
anterior não sabíamos qual tivesse sido. Chegamos ao requinte de prender numa forquilha a
nosso lado um balde cheio d'água, para remuniciar a nossa arma, e não precisar de ficar
descendo e subindo o tempo todo.
— Vem gente — anunciava Mariana, de sentinela, recolhendo depressa a cabecinha, como o
cuco de um relógio suíço, e dando lugar a meu braço com a seringa. Era um esguicho só.
Jamais deixava de passar um grande susto na pessoa lá na rua, mesmo que fosse atingida
apenas por alguns respingos.
Não era fácil acertar de cheio. Quando isso acontecia, o coitado saía completamente
encharcado. Então despencávamos da goiabeira e íamos em disparada para dentro de casa.
Ficávamos na sala, como se já estivéssemos ali longo tempo, empenhados numa distração
inocente qualquer, ao alcance da vista dos mais velhos, para enfrentar uma possível
reclamação da vítima.
A primeira que veio reclamar foi justamente o major Pape Faria.
O homem havia tomado um verdadeiro banho. Mal pudemos esconder o riso quando o vimos
entrar, molhado como um pinto por um esguicho que lhe havia encharcado a farda pelas
costas, da cabeça ao calcanhar. Veio reclamar do meu pai, água ainda escorrendo e pingando
no chão:
— Olha só o que o diabo do seu filho me fez, Meu pai o olhou, espantado:
— Onde é que o senhor se molhou assim?
— Onde é que eu me molhei? — respondeu o major, furioso: — Pergunte ali ao seu filho! Foi
esse diabo que me molhou.
— Meu filho não é diabo, e está aqui na sala um tempão, brincando com a amiguinha dele.
— Eu conheço muito bem tanto ele como essa amiguinha dele. Foram os dois juntos. Mas isso
não vai ficar assim.
— Nem um nem outro arredou pé daqui um instante sequer. Como é que podem ter jogado
água no senhor?
— Podem porque eles são capazes disso e de muito mais. Sei lá se o que me jogaram foi só
água? Pode perfeitamente ter sido coisa muito pior.
O major passava a mão nas costas molhadas e levava ao nariz:
— Ainda bem que não está cheirando. Mas boa coisa é que esse menino não é.
Meu pai se encrespou:
— Pode até não ser, mas não admito que o senhor venha à minha casa
para falar mal de meu filho.
E se adiantou, abrindo a porta para que o major se pusesse para fora da nossa casa. Ao se
despedir, além de rebaixá-lo de posto, ainda errou o nome dele:
— Passe bem, capitão Patifaria.
Mariana e eu não resistimos e soltamos uma gargalhada lá da sala. O major ficou furibundo:
— Patifaria não: PAPE FARIA! Patifaria foi o que aqueles dois me fizeram. Fique sabendo que
meu nome é Alberico Pape Faria, major do exército e não capitão. E fique sabendo também
que serei tenente-coronel antes do fim do ano. Isso não vai ficar assim.
Com esta última ameaça, deu meia-volta e, depois de fazer para mim um sinal com a mão de
quem diz "você me paga", saiu marchando com passo duro.
Estava declarada a guerra.
— Capitão Patifaria! — gritávamos, toda tarde, ao passar em frente à casa dele. Tocávamos a
sineta, sacudindo o portão, e saíamos correndo. Às vezes papai ouvia, mas, em vez de zangar,
achava graça. Mamãe ficava preocupada:
— É melhor a gente chamar a atenção desses meninos. O major pode ser antipático, mas eu
sei muito bem de que meu filho é capaz, se começar a implicar com ele. Isso ainda acaba mal.
O homem é importante, pode nos prejudicar.
— Importante lá para os soldados dele — retrucava meu pai tranqüilamente: — Sou paisano e
ele que cuide de sua importância, que de meu filho cuido eu.
Até que um dia, quando gritávamos "capitão Patifaria!" debaixo da janela dele, sem que o
major aparecesse como sempre, e antes que sacudíssemos o portão tocando a sineta, senti de
súbito uma mão pesada me segurar pelo ombro. Mariana o viu primeiro e fugiu correndo, a
gritar:
— Cuidado, Fernando! Corre também!
Era tarde. Voltei-me e dei de cara com o major, mãos estendidas para me agarrar pelo
pescoço, talvez até me estrangular. Dei uma ginga de corpo como costumava fazer no futebol.
Ele avançou por um lado, eu escapuli por outro. Ele ainda me acertou um violento cascudo no
alto da cabeça, antes que eu conseguisse fugir com quantas pernas tinha.
— Isso não vai ficar assim! — repeti de longe a sua ameaça, quando me vi a salvo.
E REALMENTE não ficou. Juntei-me à Mariana para tramarmos uma vingança à altura do
cascudo que ele me tinha dado e que me deixou com dor de cabeça o dia inteiro.
Naquela mesma noite, antes de nos recolhermos, esticamos um arame do poste de luz na
calçada ao portão da casa dele, para que ele tropeçasse quando fosse sair. No dia seguinte
ficamos sabendo que isso tinha mesmo acontecido, pois o vimos passar com o nariz
esborrachado como uma goiaba bichada, e na testa uma cruz de esparadrapo que a aba do
quepe não chegava a ocultar.
Alguns dias depois, foi a vez do major. Eu estava com alguns amigos jogando futebol na rua,
quando a bola caiu no jardim da casa dele. Era domingo, dia de nenhum movimento, e não nos
dávamos ao trabalho de ir jogar no campinho de peladas do lote vazio, que era inclinado e não
plano como o asfalto em frente à nossa casa.
— E agora? — nos entreolhamos, sem saber o que fazer, com medo do major.
Resolvemos escalar o Turcão, que era o mais forte de todos, para ir buscar a bola: ele era o
que corria menos risco de levar um cascudo do homem.
— Pede licença com delicadeza — avisamos ainda.
Em pouco o Turcão voltava, com lágrimas nos olhos:
— Olha só o que ele fez com a sua bola, Fernando.
E mostrou-nos a bola reduzida a tiras de couro, toda cortada a navalha.
— Por que você não meteu a mão na cara dele? — protestamos, indignados.
— Eu? — e o Turcão fez um ar de quem, mesmo sendo grandalhão, não
era nada bobo: — O homem estava com um revolvão deste tamanho na cintura!
Guerra é guerra — agora era a nossa vez de agir.
Com a intenção de articularmos o próximo lance, convoquei a Mariana para uma reunião em
meu quarto. Depois de pensarmos e repensarmos vários planos, foi que eu me debrucei na
janela e vi a tal manga madura.
Esquecido por um instante do major Pape Faria e suas patifarias, resolvi oferecê-la à Mariana,
que era louca por manga, derrubando-a com uma certeira bodocada. O que para mim era fácil:
bastava acertar um pouco acima, no cabo que a prendia ao galho, para que a pedra não a
machucasse, atingindo a polpa, como aquela rolinha estava quase fazendo...
A pedra partiu zunindo, realmente certeira, mas a rolinha é que tombou, atingida na cabeça.
MARIANA e eu nos olhamos, estarrecidos: matar um passarinho! Para nós, como disse, aquilo
era um pecado imperdoável. A coisa mais bonita que Deus havia feito! Quem magoasse uma
daquelas criaturinhas era como se fizesse mal a uma criança, não merecia salvação.
Então nos precipitamos até o quintal, para ver se a rolinha não estaria apenas machucada,
talvez houvesse tempo de salvá-la.
Não havia. Estava morta, caída ao chão, asas semi-abertas, a cabeça tombada para baixo,
ensangüentada. Segurei nas mãos o seu corpinho ainda quente, como se pudesse preservar
nele um resto de vida.
— E agora? — perguntou Mariana, impressionada.
— Não adianta: está morta mesmo.
Foi então que me veio, não sei por que, uma idéia maldita, diabólica, como uma tentação
soprada do próprio inferno:
— Agora só serve para comer.
Não sei por que disse aquilo, e com tanta naturalidade. Não me espantei nem um pouco
quando Mariana perguntou, com mais naturalidade ainda:
— Você sabe preparar?
— Sei. É só depenar e limpar, como a Alzira faz com as galinhas. Depois a gente acende uma
fogueirinha e assa no espeto.
E comecei a arrancar as penas da rolinha morta, uma por uma. Estava difícil, pois não me
lembrei que era preciso antes mergulhar em água bem quente. Acabei deixando esta parte
para depois:
— Vamos primeiro limpar por dentro.
No fundo, eu talvez estivesse querendo ver como era por dentro um passarinho. E Mariana, a
meu lado, olhos bem atentos, parecia partilhar da minha curiosidade. Abri a barriga da rolinha
com o canivetinho e comecei a retirar com o dedo tudo que havia lá dentro, como se fosse o recheio de uma boneca. Só que era uma matéria mole, viscosa, molhada de sangue, que começou a me causar o maior nojo, senti vontade de vomitar. Até que no meio de tudo aquilo, surgiu um pedaço de carne
compacto, do tamanho da ponta do meu dedo, era o coração dela. Mostrei para Mariana, não
podendo mais de emoção: as lágrimas me escorreram pelo rosto. Mariana também chorava,
baixinho, de pena da rolinha, ou por me ver chorando, não sei bem — o certo é que nós dois
nos entregávamos a uma crise de choro incontrolável.
— E agora? — Mariana balbuciou, entre soluços.
— Vamos enterrar — decidi, enxugando o rosto e procurando conter o choro.
Ela foi correndo à sua casa, enquanto eu abria uma pequenina cova na terra úmida, junto ao
tronco da mangueira. Em pouco estava de volta, trazendo uma caixa de sabonete Araxá vazia e
ainda perfumada. Recolhemos dentro dela, em respeitoso silêncio, os restos mortais da
rolinha, fechamos a tampa com cuidado e depusemos dentro da cova, com gestos lentos que
já obedeciam a um grave ritual. Tampamos com terra, e fizemos um montinho de pedras em
forma de túmulo, no qual espetamos uma cruz de dois paus de fósforo amarrados com linha.
Depois fizemos o nome-do-padre e rezamos um padre-nosso e uma ave-maria pela alma da
rolinha.
NAQUELA noite não pude dormir (no dia seguinte saberia que o mesmo aconteceu com
Mariana). Sentia que fizera algo de terrível, sujo e pecaminoso. Não por ter matado um
passarinho. Aquilo acontecera sem eu querer, Deus era testemunha. A minha culpa era de
haver profanado o seu cadáver, com a intenção de comê-lo. Como se eu fosse um selvagem,
um animal!
Foi então que me ocorreu a idéia que concederia o perdão por aquela falta aparentemente
imperdoável: praticar uma boa ação para compensá-la.
Quando contei a idéia à Mariana, demos saltos de alegria ao descobrir que a boa ação, por nós
logo tramada, seria ao mesmo tempo o esperado troco ao major Pape Faria, pela patifaria que
havia cometido cortando a minha bola.
Ao dizer que passarinho preso era "como esse soldado aí do lado", meu pai estava se referindo
aos passarinhos que o vizinho criava, não só em gaiolas na varanda da casa, como no imenso
viveiro ao fundo de seu quintal.
Esse viveiro sempre foi um de meus deslumbramentos: pintassilgos, tico-ticos, canários,
sanhaços, periquitos, bicos-de-lacre e mil outros passarinhos se confundiam ali dentro em
constante agitação. Eu subia no muro e ficava horas a olhar aquela passarinhada toda
revoando lá dentro, em busca de uma saída, alguns empoleirados pelos cantos, tristes porque
não podiam mesmo escapar. E me dava vontade de soltá-los.
Era o que iria fazer agora.
A sociedade secreta Olho de Gato foi reativada, para o cumprimento daquela perigosa
operação. Estenderíamos agora a natureza de suas atividades ao campo das missões
subversivas. Deixamos, entretanto, de convocar os agentes Hindemburgo e Pastoff, pois, em
se tratando de passarinhos, não sabíamos se atuariam conosco para soltá-los ou para comê-
los.
A operação ficou marcada para aquela noite. Como precaução, armei-me do bodoque e do
revólver de espoleta.
Sair de casa depois que todos houvessem dormido não nos foi difícil: já tínhamos feito aquilo
mais de uma vez.
Nos encontramos no quintal e, sem uma palavra, pulamos o muro do vizinho. O que também
nos foi fácil: subíamos e andávamos pelos muros como gatos — e por sinal que encontramos
mais de um por ali naquela noite. Parece que farejavam a novidade, e queriam ver se sobrava
alguma coisa para eles, os assassinos.
Atravessamos como duas sombras o jardim do vizinho, passando por cima dos canteiros com
cuidado para não fazer barulho. Subimos primeiro â varanda e abrimos uma a uma as gaiolas
ali dependuradas. Alguns passarinhos acordavam espantados e fugiam logo. Outros custavam
a entender o que se passava, tinham de ser retirados com a mão e atirados no ar para sair
voando.
Depois retrocedemos até o quintal e fomos libertar os do viveiro. O que não foi tão fácil: a
porta era presa por um cadeadinho que tive de arrebentar, com o auxílio de uma pedra.
— Cuidado, Fernando — Mariana me sussurrava ao ouvido, assustada: — Você está fazendo
muito barulho...
Aberta finalmente a porta, para que a passarinhada saísse logo, tive de entrar eu próprio no
viveiro e espantá-la com os braços em direção à saída. Numa revoada em torno da minha
cabeça, batendo as asas e entre cantos e chilreios, eles iam escapando.
Foi quando ouvi a voz ansiosa da Mariana lá fora, montando guarda:
— Perigo à vista! Esconde depressa!
Vi que uma luz se acendera no andar superior da casa. Uma cabeça apareceu. Logo surgiu o
cano de uma carabina, ouviu-se um estampido, uma fumacinha, e alguma coisa passou
assobiando pelo meu ouvido. Atirei-me ao chão, puxando imediatamente o meu revólver de
espoleta e atirando também, uma, duas vezes. O cano da carabina e a cabeça do major
imediatamente sumiram, a luz se apagou.
— Psiu, fique quieta — soprei para Mariana que se deitara no chão, a meu lado, junto a porta
do viveiro. Eu sabia que agora ele estava de volta a janela, no escuro para nos surpreender fugindo, pronto a atirar de novo.
Tínhamos de escapar dali de qualquer maneira. Lembrei-me do bodoque, que havia trazido
também. Assim mesmo deitado, armei-o com uma pedra das maiores, fiz pontaria na sineta do
portão, além do jardim, iluminado pela luz da rua, e atirei. A pedra partiu zunindo e acertou
em cheio no alvo: a sineta começou a tocar, como se alguém sacudisse o portão.
Consegui enganar o inimigo: logo o vulto do major surgia na varanda, esgueirando-se junto à
parede, curvado para a frente, carabina engatilhada, e descendo a escada furtivamente a
caminho do portão.
— Agora — ordenei baixinho para Mariana.
Partimos em disparada e pulamos o muro, voltando para o quintal de minha casa. Respiramos,
aliviados, e nos despedimos, indo cada um para sua casa antes que começasse a confusão.
Que não demorou muito. O major pôs-se a gritar por socorro, dizendo que estava sendo
assaltado. Um guarda-noturno da Praça da Liberdade ouviu a gritaria, chamou seus colegas,
avisou a policia inteira. Vieram até a Polícia Militar e a do Exército, pois o assaltado era um
oficial. Em poucos minutos a nossa rua virava uma praça de guerra. O major contou que os
assaltantes, surpreendidos por ele no quintal, haviam reagido com um tremendo tiroteio, por
pouco ele não morreu. Como eram muitos, conseguiram fugir, levando consigo o produto do
assalto, isto é, todos os exemplares de sua preciosa criação de passarinhos.
— Vale uma verdadeira fortuna! — afirmava, enfurecido.
TUDO isso, é lógico, ficamos sabendo no dia seguinte, ao escutar, com ar inocente, os
comentários dos mais velhos. Para que não desconfiassem de nós, achamos prudente nos
afastarmos dali. E fomos nos refugiar no porão. Quando nos viu passar, Godofredo pôs-se a
papagaiar, entusiasmado:
— Bravos, Fernando! Bravos, Mariana!
O papagaio vibrava com a nossa façanha. Como é que ele soubera?
— Esse camarada ainda vai acabar nos entregando — falei, preocupado.
E sugeri a Mariana que passássemos alguns dias sem nos vermos. Mas antes, ao entardecer
daquele mesmo dia, fomos de mãos dadas fazer uma visita ao túmulo de nossa desventurada
rolinha, junto à mangueira do quintal. Como homenagem à sua memória, fizemos a ela a
oferenda do nosso feito, libertando seus irmãozinhos.
E estávamos ali, banhados pela luz cor-de-rosa do belíssimo pôr-do-sol de Belo Horizonte,
quando uma coisa maravilhosa aconteceu. Como se brotassem do céu, bandos e bandos de
passarinhos de vários tamanhos e mil cores diferentes, vindos de todos os lados, se agrupavam
no ar, em alegre revoada, até formar um verdadeiro enxame de asas em formação cerrada. E
vieram todos para o nosso lado, voando em círculos cada vez menores e mais baixos, em meio
a uma sinfonia de cantos, chilreios e trinados, centralizando-se em cima de nossas cabeças.
Rodopiavam no ar como uma guirlanda de pequeninos seres alados, girândola vinda do céu
para nos abençoar com a sua gratidão. Rodaram várias vezes e depois o círculo se desfez, e
seguiram todos em linha reta, afastando-se como uma nuvem multicor até desaparecer em
direção ao infinito.
EPÍLOGO
O HOMEM E O MENINO
PARO de escrever, levanto os olhos do papel para o relógio de parede: cinco horas. As sonoras
pancadas começam a soar uma a uma, como antigamente em nossa casa.
É um relógio bem antigo. Foi do meu avô, depois do meu pai, hoje é meu e um dia será do meu
filho. Seu tique-taque imperturbável me acompanha todas as horas de vigília o dia inteiro e
noite adentro, segundo a segundo, do tempo vivido por mim.
Já contei várias proezas, aventuras, peripécias, tropelias (e algumas lorotas) do tempo em que
eu era menino. Nada se compara ao mistério que eu trouxe da infância e que até hoje me
intriga: quem era aquele desconhecido que um dia, depois da chuva, foi conversar comigo no
fundo do quintal?
Na hora pensei que fosse algum amigo da família, ou até parente: um velho primo ou tio que
eu não conhecesse. Cheguei, mesmo, a achar que ele se parecia um pouquinho com meu pai
— mas foi só impressão: quando perguntei quem ele era, papai me disse que não tinha a
menor idéia, pois nem chegou a vê-lo. Minha mãe também não soube dizer, muito menos o
Gerson ou o Toninho. A Alzira se limitou a dizer que me tinha visto conversando sozinho, como
eu fazia sempre.
Só restava perguntar ao Godofredo, mas o papagaio não queria saber de conversa comigo: seu
entusiasmo pela nossa façanha libertando os passarinhos já havia passado.
Hindemburgo e Pastoff talvez pudessem esclarecer alguma coisa, pois me haviam visto
conversando com ele. Mas não sabiam falar, como o Godofredo, nem mesmo responder com
sinais, como a Fernanda, que infelizmente já havia morrido. E que é que uma galinha poderia
saber a respeito de um homem, de cuja existência os outros até duvidavam?
E não fiquei sabendo, e até hoje me pergunto: quem seria ele?
Cansado de tantas recordações, afasto-me do relógio e caminho até a janela, olho para fora.
Assombrado, em vez de ver os costumeiros edifícios, cujos fundos dão para o meu
apartamento em Ipanema, o que eu vejo é uma mangueira — a mangueira do quintal de
minha casa, em Belo Horizonte. Vejo até uma manga amarelinha de tão madura, como aquela
que um dia quis dar para a Mariana e por causa dela acabei matando uma rolinha. Daqui da
minha janela posso avistar todo o quintal, como antigamente: a caixa de areia que um dia
transformei numa piscina, o bambuzal de onde parti para o meu primeiro vôo. Volto-me para
dentro e descubro que já não estou na sala cheia de estantes com livros do meu apartamento,
mas no meu quarto de menino: a minha cama e a do Toninho, o armário de cujo espelho um
dia se destacou um menino igual a mim...
Saio para a sala. Vejo meus pais conversando de mãos dadas no sofá, como costumavam fazer
todas as tardes, antes do jantar. Comovido, dirijo-me a eles:
— Papai... Mamãe...
Mas eles não me vêem. Nem parecem ter-me ouvido, como se eu não existisse. Ganho o
corredor, passo pela copa onde o relógio está acabando de bater cinco horas. Atravesso a
cozinha, vendo a Alzira a remexer em suas panelas, sem tomar conhecimento da minha
existência. Desço a escada para o quintal e dou com um garotinho agachado junto ás poças
d'água da chuva que caiu há pouco, entretido com umas formigas. Dirijo-me a ele, e ficamos
conversando algum tempo.
Depois me despeço e refaço todo o caminho de volta até meu quarto. Vou à janela, olho para
fora. O que vejo agora é a paisagem de sempre, o fundo dos edifícios voltados para mim,
iluminados pelas luzes do entardecer em Ipanema. Ouço o relógio soando a última pancada
das cinco horas. Viro-me, e me vejo de novo no meu apartamento.
Caminho até a mesa, debruço-me sobre a máquina que abandonei há instantes. Leio as
últimas palavras escritas no papel:
... até desaparecer em direção ao infinito.
Sento-me, e escrevo a única que falta:
FIM
FERNANDO (Tavares) SABINO nasceu em Belo Horizonte, a 12 de outubro de 1923. Fez o curso
primário no Grupo Escolar Afonso Pena e o secundário no Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte.
Aos 13 anos escreveu seu primeiro trabalho literário, uma história policial publicada na revista
Argus, da polícia mineira.
Passou a escrever crônicas sobre rádio, com que concorria a um concurso permanente da
revista Carioca, do Rio, obtendo vários prêmios. Uniu-se logo a Hélio Pellegrino, Oito Lara
Resende e Paulo Mendes Campos em intensa convivência que perduraria a vida inteira. Entrou
para a Faculdade de Direito em 1941, terminando o curso em 1946 na Faculdade Federal do
Rio de Janeiro.
Ainda na adolescência publicou seu primeiro livro, Os Grilos Não Cantam Mais (1941), de
contos. Mário de Andrade escreveu-lhe uma carta elogiosa, dando início à fecunda
correspondência entre ambos. Anos mais tarde, publicaria as cartas do escritor paulista em
livro, sob o título Cartas a um Jovem Escritor (1982). Em 1944 publica a novela A Marca e
muda-se para o Rio. Em 1946 vai para Nova York, onde fica dois anos, que lhe valeram uma
preciosa iniciação na leitura dos escritores de língua inglesa. Neste período escreveu crônicas
semanais sobre a vida americana para jornais brasileiros, muitas delas incluídas em seu livro A
Cidade Vazia (1950). Iniciou em Nova York o romance O Grande Mentecapto, que só viria
retomar 33 anos mais tarde, para terminá-lo em dezoito dias e lançá-lo em 1976 (Prêmio Jabuti
para Romance, São Paulo, 1980), com sucessivas edições. Em 1989 o livro serviria de
argumento para um filme de igual sucesso, dirigido por Oswaldo Caldeira.
Em 1952 lança o livro de novelas A Vida Real, no qual exercita sua técnica em novas
experiências literárias, e em 1954 Lugares-Comuns - Dicionário de Lugares-Comuns e Idéias
Convencionais, como complemento à sua tradução do dicionário de Flaubert. Com O Encontro
Marcado (1956), primeiro romance, abre à sua carreira um caminho novo dentro da literatura
nacional.
Morou em Londres de 1964 a 1966 e tornou-se editor com Rubem Braga (Editora do Autor,
1960, e Editora Sabiá, 1967). Seguiram-se os livros de contos e crônicas O Homem Nu (1960), A
Mulher do Vizinho (1962, Prêmio Fernando Chinaglia do Pen Club do Brasil), A Companheira de
Viagem (1965), A Inglesa Deslumbrada (1967), Gente I e II (1975), Deixa o Alfredo Falar!
(1976), O Encontro das Águas (1977), A Falta que Ela me Faz (1980) e O Gato
Sou Eu (1983). Com eles veio reafirmar as suas qualidades de prosador, capaz de explorar com
fino senso de humor o lado pitoresco ou poético do dia-a-dia, colhendo de fatos cotidianos e
personagens obscuros verdadeiras lições de vida, graça e beleza.
Viajou várias vezes ao exterior, visitando países da América, da Europa e do Extremo Oriente e
escrevendo sobre sua experiência em crônicas e reportagens para jornais e revistas. Passa a
dedicar-se também ao cinema, realizando em 1972, com David Neves, em Los Angeles, uma
série de minidocumentários sobre Hollywood para a TV Globo. Funda a Bem-te-vi Filmes e
produz curtas-metragens sobre feiras internacionais em Assunção (1973), Teerã (1975), México
(1976), Argel (1978) e Hannover (1980). Produz e dirige com David Neves e Mair Tavares uma
série de documentários sobre escritores brasileiros contemporâneos.
Publicou ainda O Menino no Espelho (1982), romance das reminiscências de sua infância, A
Faca de Dois Gumes (1985), uma trilogia de novelas de amor, intriga e mistério, O Pintor que
Pintou o Sete, história infantil baseada em quadros de Carlos Scliar, O Tabuleiro de Damas
(1988), trajetória do menino ao homem fato, e De Cabeça para Baixo (1989), sobre "o desejo de
partir e a alegria de voltar" - relato de suas andanças. vivências e tropelias pelo mundo afora...
Em 1990 lançou A Volta por Cima, coletânea de crônicas e histórias curtas. Em 1991 a Editora
Ática publicou uma edição de 500 mil exemplares de sua novela "O Bom Ladrão" (constante da
trilogia A Faca de Dois Gumes) um recorde de tiragem em nosso país. No mesmo ano é lançado
seu livro Zélia, Uma Paixão. Em 1993publicou Aqui Estamos Todos Nus, uma trilogia de ação,
fuga e suspense, da qual foram lançadas em separado, pela Editora Ática, as novelas "Um
Corpo de Mulher", "A Nudez da Verdade" e "Os Restos Mortais". Em 1994 foi editado pela
Record Com a Graça de Deus, "leitura fiel do Evangelho, segundo o humor de Jesus". Em 1996
relançou, em edição revista e aumentada, De Cabeça para Baixo, relato de suas viagens pelo
mundo afora, e Gente, encontro do autor ao longo do tempo com os que vivem "na cadência
da arte". Também em 1996, a editora Nova Aguilar publicou em 3 volumes a sua Obra Reunida
Em 1998 a Editora Ática lançou, em separado, a novela "O Homem Feito", do livro A Vida Real,
e Amor de Capitu, recriação literária do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. E ainda
em 1998, além de O Galo Músico, "contos e novelas da juventude à maturidade, do desejo ao
amor", a Record editou, com grande sucesso de crítica e de público, o livro de crônicas e
histórias No Fim Dá Certo - "se não deu certo é porque não chegou ao fim" - e em 1999, A
Chave do Enigma No mesmo ano foi agraciado com o Prêmio Machado de Assis da Academia
Brasileira de Letras pelo conjunto da obra.
Tendo lançado em 2001 uma coletânea completa de "páginas soltas ao longo do tempo", sob o
título Livro Aberto, no mesmo ano publicou as Cartas Perto do Coração - sua correspondência
com Clarisse Lispector - "dois jovens escritores unidos ante o mistério da criação".
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